Cleison Silfer

Artigo: A relação do RPG e os livros de Tolkien por Cleison Silfer

O artigo que segue é de autoria de Cleison “Silfer” Ferreira, Mestre e jogador de RPG por mais de dez anos. Membro do Clube de Jogos Sétima Armada.

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“Duas linhas de uruk-hai avançavam de armas de em punho. Não eram mais do que 15. Todos com vestimentas de guerra completas. O ambiente ao redor era típico das planícies de Rohan: longos campos verdejantes, com o sol brilhante tocando a grama. À frente das criaturas se erguia uma pequena torre de vigia. Do alto, uma flecha foi disparada e o primeiro uruk-hai caiu. Legolas disparava suas flechas em repetição. Aragorn saltou de uma das janelas mais baixas e correu para derrubar um dos inimigos com um tronco. Gimli corria a seu lado, o machado fazendo serviço de açougueiro. De pé, na porta da torre, Boromir e Faramir atiravam com pesadas bestas…”.

Calma aí, Boromir vivo em uma cena em Rohan? Faramir lutando ao lado da Sociedade do Anel? Tem algo errado… Quando Rohan aparece nos romances, a Sociedade está desfeita, Boromir morto e Faramir ainda não apareceu na estória. Então como isso é possível?

Três letras: RPG.

RPG é um jogo de interpretação, um jogo de faz de conta. É muito semelhante ao velho “polícia e ladrão”, porém com algumas peculiaridades. Há regras para que o jogo possa ser bem conduzido. Há regras para a construção de cada personagem da estória. Dentro os jogadores, um atua como Mestre, que é o responsável por conduzir o jogo, e os demais são os protagonistas da estória. E, por mais que os autores do RPG digam que não, muito disso veio com o universo de Tolkien.

Impossível para qualquer jogador de RPG não traçar paralelos entre o hobby e a obra de Tolkien. Senhor dos Anéis é uma grande campanha de RPG. Nos termos do jogo, chamamos de campanha uma grande saga repleta de aventuras. A missão de Frodo e os demais de levar o Um Anel até Mordor é semelhante a várias missões criadas em mesas de RPG. O Hobbit é outro bom exemplo. A aventura de Bilbo, Thórin e os demais nada mais é do que uma grande aventura de RPG. Há várias cenas e peculiaridades que podemos verificar entre os mesmos.

A ideia de um grupo atravessar o mundo, adentrar uma montanha e enfrentar um dragão para pegar o tesouro do monstro é um dos maiores clichês do RPG. Regras como percentual de chance de um dragão estar dormindo, entrar de forma furtiva em salas e usar lábia e adivinhas são semelhantes a cenas do Hobbit.

O Hobbit também nos brinda com arquétipos como o anão guerreiro, o hobbit (no RPG chamado halfling) ladino e o dragão ganancioso que acumula riquezas. Cada personagem de O Senhor dos Anéis também tem seu arquétipo nos sistemas de RPG. O anão guerreiro, o elfo arqueiro. Além disso, é possível conferir algumas habilidades de Dungeons & Dragons, o mais famoso RPG do mundo, dentro da obra de Tolkien. A cena de As Duas Torres em que Aragorn usa seu “talento” Rastrear para guiar o grupo até o local em que os uruk-hai levaram Merry e Pippin; os “Ataques Múltiplos” de Legolas; a Liderança de Éomer e Aragorn nas batalhas de O Retorno do Rei.

Também de O Senhor dos Anéis tiramos itens mágicos, peças importantes de qualquer boa aventura. Desde armas mágicas, como Ferroada e Andúril, até os próprios anéis do poder. Qual grupo de RPG nunca atravessou uma masmorra, passou por armadilhas e enfrentou um dragão para no final encontrar cotas de malha élfica ou mithril? Senhor dos Anéis apresenta todos estes elementos.

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Deve-se destacar também evolução dos personagens. Sam começa a estória como um simples jardineiro. No final está travando um combate épico com Laracna. Merry e Pippen sofrem a mesma evolução. Começam dois bufões, fazendo várias brincadeiras, e no fim estão participando (e sobrevivendo) de batalhas que definem o destino da humanidade. Todos mostram como o tempo (e a experiência ou XP) afetam os personagens. No RPG isso é visto através do acúmulo de níveis de personagem. Quanto mais experiente é um personagem, maior o nível do mesmo dentro do jogo. Aragorn é um exemplo melhor ainda. Ele começa como um Guardião, usando habilidades de seguir rastros e sobreviver em ambientes hostis. No fim da trama ele se ergue como o líder guerreiro dos homens. Um verdadeiro Cavaleiro. Isso no RPG é tido como multi-classe. Você acumula poderes de dois arquétipos diferentes.

Também são nítidas na saga algumas figuras que se tornaram clássicas em RPGs. O mago que orienta o grupo e nem sempre está disponível. Gandalf interfere em vários momentos, usando suas habilidades e sabedoria. Porém em vários momentos ele não está presente e é necessário que os demais personagens se virem sozinhos. O mago pode ser visto como um personagem do mestre (npc) que surge para dar uma ajuda, mas depois parte para deixar que os verdadeiros protagonistas salvem o mundo. Temos também a figura do mal extremo, seja ele a figura do Necromante, em O Hobbit; Sauron, como uma energia manipuladora ou o Rei de Angmar, representando o bom e velho cavaleiro negro. Todo grupo de RPG tem um vilão a derrotar. E os arquétipos apresentados são muitos recorrentes em muitas campanhas.

Além de toda essa semelhança em nível de personagens, O Senhor dos Anéis também ensina a contar estórias, a descrever ambientes, a montar o clima. Mestres de RPG, veteranos ou novatos, podem encontrar inspiração nas páginas do legado de Tolkien para compor suas próprias sagas. Ainda que estas não se situem na Terra Média, as referências são sempre válidas. Tolkien, bem como qualquer autor, atua quase como um mestre de RPG. É ele o responsável por descrever o ambiente, apresentar desafios e mostrar o resultado de cada ação, além de cuidar dos personagens secundários. A diferença é que nos livros, o autor também controla os protagonistas, enquanto no jogo são os jogadores que o fazem.

Perceba, então, que é O Senhor dos Anéis uma grande saga de RPG. A diferença é que no livro você apenas acompanha o destino, enquanto no jogo você o define. Então largue o conforto do seu livro. Arme-se com lápis, papel, dados e imaginação. Muita imaginação. Pois foi a imaginação que construiu a Terra Média e a imaginação que sempre irá mantê-la.

 

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O Clube de Jogos Sétima Armada reuni entusiastas de diversos tipos de jogos, dentre eles RPGs e jogos de tabuleiro. As reuniões ocorrem aos domingos, de 13:00h às 18:00h, no Centro Cultural UFMG (Avenida Santos Dumont, 174 – Centro  Belo Horizonte – MG).