Após a incrível entrevista com Cristina Aguiar sobre suas atividades como escritora e sua obra de ficção, temos o prazer de anunciar que a escritora cearense irá semanalmente escrever um conto sequencial em uma terra muito amada pelos que acessam esse site. Então aproveitem e curtam essa nova história:
Parte I – Estranhos na Cidade
Fazia tempo que a cidade não recebia tanta gente estranha. O portão, normalmente fechado para os que vinham de fora, estava misteriosamente aberto, recebendo visitantes de todas as regiões, como se aquela aglomeração inesperada fosse necessária. Isso, sem contar as conversinhas sussurradas em grupos, os olhares desconfiados e um clima de ansiedade crescente que combinava com o frio daquela estação.
O jovem Owen, esquecendo os próprios afazeres na oficina do velho ferreiro Aldair, passava horas na janela, observando o movimento de entrada e saída na porta da estalagem que ficava em frente, separada da oficina por uma rua estreita e movimentada. Ele analisava o rosto das pessoas estranhas que chegavam. Eram rostos duros, rudes e preocupados. Muitos pareciam cansados e desanimados. Uma pergunta atormentava o rapaz – O que estaria acontecendo além da fronteira e fora do portão? Afinal, os habitantes daquela cidade eram acomodados o suficiente para ficarem satisfeitos dentro de seus muros. Suas viagens raramente ultrapassavam o perímetro da colina onde a cidade estava cravada em meio a campos de plantação.
Naquele momento, chamando sua atenção, surgiu um grupo de anões. Eram cinco ao todo. Eles eram atarracados e barbudos, com roupas pesadas de viagem e puxavam uma carroça cheia de caixas e sacos. Apesar disso, não pareciam comerciantes, pois com aquelas carrancas dificilmente alguém se aproximaria deles. Owen, no entanto, chegou mais perto da janela, atentando para a carga que levavam. Um dos anões retirou uma das caixas e a carregou com firmeza, como se aquela em especial fosse mais valiosa que as outras. Era uma caixa comprida e achatada, cuja superfície de madeira escura parecia brilhar como se estivesse banhada em verniz. Ele não sabia o motivo, mas algo naquela caixa o atraía.
— Se o velho Aldair chegar e ver que você ainda não começou o trabalho de acender o fogo, você vai acabar ficando sem jantar novamente.
Ele assustou-se com a voz da irmã gêmea, Briana. Ela trazia na mão uma bacia com água tirada do poço, e já se encaminhava para a cozinha, a fim de iniciar o seu trabalho ali. No entanto, ela vira o mesmo que o irmão através da janela e, soltando a bacia, se aproximou para ver mais de perto. A curiosidade, como se via, era um atributo de ambos.
— De onde acha que eles são? – ela perguntou.
— De onde os anões poderiam ser? Do Leste, é claro! Daquelas minas escuras que geram tantas histórias assustadoras nas bocas dos viajantes.
Ambos mantinham-se grudados à janela, esquecidos de tudo o mais. Um vento forte e um movimento descuidado acabaram por retirar o pano que cobria parcialmente a estranha caixa, revelando um símbolo entalhado em alto relevo. Ao vê-lo, Owen levou instintivamente a mão em direção ao cordão que usava no pescoço. Briana, ao seu lado, teve a mesma reação, visto que ela também possuía um cordão. O símbolo na caixa mostrava um arco dourado sendo cruzado por uma flecha prateada. O mesmo arco dourado que havia no cordão de Owen; a mesma flecha prateada no cordão de Briana. Os gêmeos se entreolharam.
— Acho que aquilo pertencia ao nosso pai! – ele falou sem pensar.
— Não podemos ter certeza, Owen! Foi há muito tempo!
— Era o símbolo dele, Briana! Ele o criou, eu me lembro. Primeiro um desenho, depois ele forjou um colar para si e esses para nós. Ele disse, naquela ocasião, que aquele símbolo faria parte de nossa família, ligando-nos para além da distância. Ele falou antes de partir: “Esse símbolo está ligado ao meu nome e à minha casa. Quando o virem, saibam que serei eu falando com vocês, pois ele lhes abrirá as portas que um dia precisarão passar”.
Briana hesitou. Ela se lembrava de cada palavra dita pelo pai na noite em que partira. Palavras enigmáticas que ela não compreendera na época e nem compreendia agora. Na noite em que os abandonara por não suportar viver sem a presença da amada esposa, morta de forma repentina. Ninguém gostava de falar sobre aquilo, visto que o corpo da mãe nunca fora encontrado, certamente por ter sofrido uma morte violenta em algum ataque de lobos ou coisa pior. Ela detestava pensar em trolls e goblins atacando alguém como sua mãe, cuja beleza era comentada por todos. Myrna era o seu nome. Brayan, o pai, era um ferreiro habilidoso. Ele preferira partir para a guerra que acontecia no Norte e deixá-los ali. Ela perguntava a si mesma, todos os dias, o que o motivara a fazer aquilo. Seu pai, ela sabia, escondia muitos segredos. O velho Aldair aceitara o encargo de cuidar da oficina de seu pai e dar-lhes assistência, mas com o tempo ele passou a sentir que era o verdadeiro dono daquilo tudo. Agora, ela e o irmão viviam de favores na sua própria casa.
— Briana, nós temos que…
— Nós temos que voltar ao nosso trabalho! – ela disse enquanto enxugava uma lágrima dos olhos. – Não quero mais falar nisso.
Falar era fácil. Esquecer era difícil. O dia passou na sua normalidade, mas para Briana a imagem do símbolo ainda estava viva em sua mente, assim como as palavras do pai que nunca foram realmente esquecidas. Ela procurou evitar o irmão durante todo aquele dia, mas acabou indo ao seu quarto na hora de dormir. Precisavam conversar. Ao entrar, ela estacou surpresa ao ver a janela aberta e a cama vazia! Correndo até a janela, Briana viu o cabelo escuro do irmão refletido pela luz da lua. Ele estava próximo ao portão. Ela, num impulso, ergueu a saia e pulou.
— Owen! – ela sussurrou de forma que apenas ele ouvisse sua voz, apesar da rua estar quieta e deserta naquela hora. – O que pensa que está fazendo?
Ele parou no portão, olhando em volta, com medo de alguém ter ouvido a voz de Briana.
— Eu preciso ver o que tem naquela caixa! Se você não quiser vir, se não acredita, pode ficar. Mas eu vou. Eu quero respostas, Briana! Respostas que eu aguardo desde que ele partiu.
Ela queria retrucar, mas não podia. Essas respostas eram destinadas a ela também. Respirando fundo, ela encarou a estalagem silenciosa cujas portas já estavam fechadas e as luzes apagadas. O único som vinha do vento agitando a placa quebrada do estabelecimento onde se podia ver a imagem de um pônei meio desbotado.
— Está bem, eu vou com você. O fato é que também preciso dessas respostas.
Owen sorriu satisfeito. Eles atravessaram a rua molhada e escura, parando diante da porta da estalagem.
— E agora? Nós batemos e perguntamos pela caixa?
Ele ignorou a ironia da irmã enquanto fixava a sua atenção na entrada que levava aos estábulos.
— Eu vi quando eles colocaram a caixa de volta na carroça e a levaram para o estábulo, juntamente com os pôneis.
— Ela pode não ser tão valiosa assim, já que foi mantida junto à bagagem normal. Anões não costumam largar seus tesouros por aí.
Owen suspirou e olhou para ela. Briana, quando ficava nervosa, tinha a tendência de irritá-lo.
— Ela pode ser valiosa para nós. Além disso, não estou atrás de tesouros. Agora, pare de resmungar e venha!
O pátio dos estábulos era bastante amplo. O luar iluminava parcialmente aquela noite, visto que muitas nuvens cobriam o céu. Uma hora havia muita luz, e no momento seguinte estavam envolvidos pela escuridão. Um latido se fez ouvir. Briana agarrou o braço do irmão, mas Owen estava tranqüilo. Ele havia levado comida para o cachorro do estalajadeiro. O animal recebeu o agrado e ignorou completamente a presença dos jovens intrusos. Eles atravessaram o pátio e chegaram aos estábulos.
— Como vamos saber em qual baia eles alojaram os pôneis? – Briana perguntou, aliviada por terem saído do pátio aberto.
— É fácil! Eles estarão junto com a carroça.
Ele tinha razão. Apenas três, das cinco baias, estavam ocupadas naquela noite. Os pôneis estavam na última delas. A carroça desatrelada descansava ao lado, coberta por uma pesada lona. Naquele momento, o luar ajudou, dando o ar de sua graça, derramando sua luz suave naquele lugar. Owen agarrou uma das pontas da lona.
— Me ajude a tirar isso!
Eles puxaram a lona revelando várias caixas e sacos, mas para sua surpresa, nenhuma deles era a caixa que procuravam! Eles ficaram olhando para a carroça, ofegantes, sem saber o que fazer.
— E então? Onde está ela? – Briana tentou esconder o pânico da própria voz.
— PROCURAM POR ISSO? – a voz às suas costas soou como um trovão.
Eles viraram-se e, com o susto, acabaram caindo sentados no chão, afastando-se até suas costas darem na carroça. O anão diante deles metia medo pelo seu aspecto feroz. Era forte, com uma barba longa e avermelhada, e os seus olhos brilhavam no escuro. A voz grave e potente os paralisara de medo. Embaixo do braço, ele trazia a caixa que procuravam. Atrás dele, o resto do grupo observava em silêncio. Todos eles tinham barbas longas e trançadas, e guardavam a mesma expressão feroz, e uma posição de alerta. Alguns tinham machados nas mãos. Com um passo firme para frente, o que estava com a caixa se inclinou e olhou com atenção para os dois colares. Ao se erguer novamente, trazia no rosto uma expressão enigmática.
— O que vai fazer com eles, Zârad? – perguntou um dos anões cujo machado pulava de uma mão para outra, ansioso por uma boa briga.
Ele coçou a barba vermelha.
— Sumam daqui, seus ratos! Ninguém mexe em bagagem de anões, senão os próprios anões!
Os olhares de Owen e Zârad se encontraram por apenas um momento. Momento suficiente para o rapaz saber que havia no olhar do anão algum tipo de reconhecimento. Ele agarrou a mão de Briana, que parecia paralisada, e a puxou para fora. Mas algo lhe dizia que aquele não seria o seu único encontro com Zârad. E nem a última vez que via aquela caixa.