Diversas

PROJETO: VAMOS LER O SILMARILLION!

Depois do sucesso de o Senhor dos Anéis e O Hobbit muitas pessoas procuram saber mais sobre o universo criado por J.R.R. Tolkien. E é justamente aí que encontram o livro O Silmarillion.  Porém, apesar de ser um livro razoavelmente curto (cerca de 300 páginas), contém um emaranhado de nomes, personagens e descrições de cenários. Com isso muitas pessoas se perdem na leitura e acabam desistindo ou mesmo desanimam logo no começo por algum motivo.

Pensando nisso que decidimos agora nesse ano de 2018 iniciar o projeto “VAMOS LER O SILMARILLION” onde serão gravados vídeos periodicamente, contendo resumo dos capítulos e explicações.

As leituras serão complementadas por um material que facilita e organiza o entendimento da obra. São os livros “Atlas da Terra-média” de Karen Fonstad e o “The Complete Guide to Middle-Earth” de Robert Foster.

O ideal é que você leia o capítulo antes de assistir os vídeos, pois neles iremos falar do conteúdo do capítulo e se você não leu poderá acabar estragando a surpresa da leitura. Mas se você não se importa assista do mesmo jeito, pois isso facilitará as ideias na hora do debate.

A partir do momento que o vídeo for postado iremos abrir debates tanto nos comentários do vídeo como em nosso grupo no facebook (link AQUI). Lá você poderá apresentar suas dúvidas e análises do que achou do capítulo etc.

Preparamos o seguinte calendário dos dias que serão postados cada vídeo, para que você possa se programar. Os vídeos serão postados nos dias que estão marcados com uma bolinha vermelha. O horário será entre as 19:00 e 20:00.  Os vídeos serão postados em nosso novo canal TOLKIENISTA (link Aqui)

Os capítulos que estão para serem lidos em uma semana são aqueles com tamanho médio (que em uma leitura de 20 a 30 minutos você consegue terminar). Os capítulos muito curtos serão postados na mesma semana e os capítulos grandes (como o Beren e Lúthien e Túrin Turambar) foram divididos em dois vídeos na semana.

O calendário poderá ser alterado devido aos pedidos ou mesmo por algum imprevisto. Mas o que temos programado é o seguinte:

 

Diversas

Feliz aniversário J.R.R. Tolkien! 126 anos do nascimento do autor!

J.R.R. Tolkien

HOJE, 3 de janeiro de 2018, J.R.R. Tolkien completaria 126 anos de idade.

O maior escritor de fantasia moderna nasceu em 1892 no Estado livre de Orange (onde hoje é a África do Sul).

A cada ano celebramos o seu aniversário. The Tolkien Society, o grupo de fãs do Tolkien com sede na Inglaterra, comemora esse dia realizando um brinde especial “Ao Professor!”, onde se busca fazer um momento de reverência ao escritor.

Desde que publicou seus livros o autor se tornou um verdadeiro fenômeno literário. A vida e obra desse homem servem de exemplo para milhões de pessoas espalhados por todo o mundo. São obras que trazem virtudes, entretenimento e aconchego para aqueles que procuram uma fantasia e enxergar o próprio mundo com mais beleza.

Tolkien através de palavras consegue nos tornar mais humanos (e até mais hobbitescos). Evidencia-nos o que é mais gentil e singelo através dos hobbits. E mostra o que é cruel e horrível nas forças do mal. As obras do Tolkien não apenas nos fazem sorrir e ter um dia agradável, elas nos edificam, nos moldam para sermos melhores.

Nesse ano de 2018 teremos muitas novidades, tendo início os primeiros trabalhos relacionados a série televisiva ambientada no mundo do Tolkien e ainda um filme que trata da vida do autor no período da primeira guerra mundial. Serão momentos emocionantes e teremos muitas novidades em publicações de livros relacionados a Tolkien. E novos vídeos serão produzidos para nosso novo canal no youtube: Tolkienista (veja mais Aqui)

Certamente Tolkien será sempre lembrado por todos que foram tocados por suas palavras.

Feliz aniversário J.R.R. TOLKIEN! E que seja sempre lembrado!

 


 

Diversas

TOLKIENISTA o nosso novo canal no youtube!

 

Em 2012 criamos o primeiro canal do youtube (internacionalmente e nacionalmente) “Tolkien Brasil” dedicado exclusivamente a analisar a vida e obra de Tolkien. Logo atuamos no canal “Universo Tolkien” em 2014 que agora passou a ser chamado de “Tolkienista”.

Esse canal Tolkienista tem cerca de três meses de atividade e conta com mais de 50 vídeos que tratam sobre a obra do Tolkien em diversos âmbitos.

A ideia do canal é apresentar o máximo de informações sobre esse grande escritor, de uma forma clara e didática e sem grandes complicações. Por isso, o material é crescente, iniciando com temas básicos e se aprofundando conforme o canal vai se desenvolvendo, para você que quer conhecer mais sobre a obra do Tolkien pode começar vendo o vídeo 1 e ir acrescentando as informações conforme os vídeos sequenciais forem sendo feitos.

O canal está dividido por temas e com a finalidade de organizar os vídeos criamos a plataforma http://www.tolkienista.com onde os vídeos serão postados e organizados, o que facilitará para você na hora de estudar o tema pretendido.

As atividades do site Tolkien Brasil seguirão como antes. A diferença é que teremos agora mais uma fonte de informações filiada ao Tolkien Brasil. O canal Tolkienista será nossa forma de comunicação rápida e direta sobre os assuntos do Tolkien, assim como fazemos em nosso grupo no facebook.

Teremos novidades espetaculares para o site Tolkien Brasil em 2018 e você e nós seremos os grandes beneficiados por sermos leitores desse grande escritor.

Então, se inscreva em nosso novo canal e se aventure em nossos vídeos clicando AQUI. E acesse http://www.tolkienista.com.

 

Sobre Filmes

Oficial: Amazon fará série prequel de O Senhor dos Anéis

Se inscreva em nosso canal para saber mais novidades e vídeos AQUI.

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Agora é oficial. Segundo a notícia do site Variety ()  publicada nesse dia 13 de novembro de 2017 pelo jornalista Joe Otterson, a Amazon juntamente com a Tolkien Estate, HarperCollins e a Warner Bros irão produzir uma série televisiva relacionada ao Senhor dos Anéis.

“O Senhor dos Anéis é um fenômeno cultural que capturou a imaginação de gerações de fãs pela literatura e na telona”, disse Sharon Tal Yguado, chefe de séries roteirizadas da empresa. “Estamos honrados de trabalhar com o Tolkien Estate,  HarperCollins(editora dos livros do Tolkien)  e a New Line (estúdio dos filmes) nessa animadora colaboração para a televisão, e estamos ansiosos em levar os fãs de O Senhor dos Anéis para uma nova jornada épica na Terra-Média.”

“Estamos encantados que a Amazon, e seu longo compromisso com a literatura, seja a casa da primeira série de TV multi-temporada de O Senhor dos Anéis”, disse Matt Galsor, representante da Tolkien Estate e HarperCollins. “Sharon e a equipe da Amazon Studios tem ideias excepcionais de trazer para as telas as histórias não-exploradas anteriormente com base nas escritas originais de J.R.R. Tolkien”, concluiu.

Segundo o comunicado oficial a trama será ambientada antes do primeiro filme. “Ambientada na Terra-Média, a adaptação televisiva explorará novas tramas antecedendo A Sociedade do Anel, de J.R.R. Tolkien.”[1]

O desenvolvimento da série “Senhor dos Anéis” vem quando a Amazon está preparada para prosseguir um novo mandato de programação ditado pelo CEO da Amazon, Jeff Bezos. O streamer está à procura de uma programação de gênero “Game of Thrones”, com amplo apelo internacional.

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[1] Set in Middle Earth, the television adaptation will explore new storylines preceding J.R.R. Tolkien’s The Fellowship of the Ring. The deal includes a potential additional spin-off series.

Legendarium

O elfocentrismo no Silmarillion

by Eduardo Stark

Antes de ler esse artigo é interessante ter lido antes esse artigo AQUI e se inscrever no canal do youtube AQUI.

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Inicialmente J.R.R. Tolkien pretendia criar uma mitologia que fosse dedicada à Inglaterra. O mundo seria o nosso próprio, porém com um período imaginário antigo em que ocorressem lendas e aventuras diversas. Como se fossem histórias há muito tempo esquecidas e que recentemente voltaram a ser estudadas e traduzidas para o Inglês.

Nas mitologias em geral, os protagonistas são heróis com aspectos humanos ou divinos ou até mesmo os próprios deuses. As criaturas que fazem parte das lendas são colocadas como secundárias, sendo vilões ou aliados do personagem principal. Tolkien decidiu inovar nesse ponto em sua mitologia. Os elfos passaram a ser o centro dessas histórias.

Antes da publicação do Hobbit e O Senhor dos Anéis, os elfos não eram o foco principal de contos de fadas e as poucas histórias existentes eram “relativamente raras” e pouco interessantes para Tolkien. Assim, o que o autor pretendia era mudar essa situação, colocando o foco principal em lendas dos elfos e como elas chegaram até os humanos.

A nova mitologia elfica estaria relacionada às origens da Inglaterra. Haveria uma conexão entre o mito e a realidade. As lendas seriam anteriores ao surgimento das Ilhas britânicas e da formação do mundo atual geologicamente. Mas se existe essa relação, por qual motivo ela não chegou a ser conhecida dos ingleses, tal como as mitologias dos gregos e outros povos?

Para Tolkien os elfos estavam tão distantes dos humanos que suas histórias acabaram sendo perdidas com o passar dos anos. A ausência desse contato diluiu e praticamente eliminou por completo as histórias antigas. O que algum dia foi algo visível passou a ser apenas referências em relatos escritos milhares de anos depois.

Dentro desse aspecto, ao tratar sobre contos de fadas, Tolkien entendia que essas histórias não dependem de nenhuma definição ou relato histórico sobre elfos ou fadas, mas que estariam relacionadas ao chamado “Reino Encantado” e as aventuras que ocorressem ali. E nesse aspecto, em seu ensaio Sobre Contos de Fadas, apresentou os seguintes argumentos em relação aos elfos:

se os elfos são de verdade, e de fato existem independentemente de nossas histórias sobre eles, então também isto certamente é verdade: os elfos não se interessam primordialmente por nós, nem nós por eles. Nossos destinos são distintos, e nossas trilhas raramente se encontram. Mesmo nas fronteiras do Reino Encantado só os encontramos em algum cruzamento fortuito de caminhos. (Sobre Contos de Fadas).

No período em que se passa O Senhor dos Anéis, na Terceira Era do Sol, os elfos estão partindo e o mundo para eles já não é mais o mesmo. É como se uma civilização inteira estivesse deixando o continente gradualmente. Por isso, os relatos que foram feitos nesse tempo partem dos humanos ou dos Hobbits. O encontro com os elfos é sempre raro, a ponto de sua existência ser considerada pelos homens comuns apenas lendas de tempos antigos.

A Quarta Era do Sol e os períodos que interligam a história do imaginário de Tolkien ao nosso mundo real são obscuros, mas o autor deixa claro que foram tempos sombrios em que aos poucos os homens deixam de serem grandes reis de Gondor e passam a serem reis comuns. Nesse tempo as tradições e os registros foram perdidos e os elfos seriam novamente vistos como lendas populares.

Pelo fato dos elfos não se interessarem pelos humanos o contato foi perdido. Somente um encontro entre essas duas raças poderia novamente levar aos homens as antigas lendas e restaurar em parte o que quase totalmente foi esquecido. É nessa reflexão que Tolkien escreveu os versos finais do poema “O Clamor do Menestrel” (The Bidding of the Minstrel) em 1915, onde alguém pede ao Menestrel que conte histórias antigas sobre os elfos.

Em seus primeiros escritos da mitologia criada, Tolkien teve a ideia de um viajante marinheiro que por acaso chegaria a uma ilha encantada. Nesse local ele encontraria os elfos que narrariam suas histórias desde a criação do universo até as mais renomadas lendas de seu povo. O marinheiro voltaria para a Inglaterra e lá ele iria divulgar suas histórias. Essa ideia foi bastante explorada nos primeiros escritos do legendarium, sobretudo no Livro dos Contos Perdidos. Mas com o passar do tempo, Tolkien modificou essa ideia de várias maneiras. Foi assim que a mitologia se tornou centrada nos elfos, já que eles próprios seriam inicialmente os narradores de seus feitos.

Em mais de uma oportunidade Tolkien chamava o Silmarillion de uma “história dos Elfos”[1],[2], ou a História dos Eldar (Elfos)[3]. Por tratar dos feitos desses seres e com sua visão a mitologia é considerada por Tolkien como “elfocentrista”[4], ou seja, os homens não são o centro das histórias e sim as criaturas fantásticas. Conforme Tolkien expressou em carta:

Como disse, o lendário Silmarillion é peculiar e difere de todos os materiais similares que conheço por não ser antropocêntrico. Seu centro de vista e interesse não está nos Homens, mas nos “Elfos”. Os Homens surgiram inevitavelmente: afinal de contas, o autor é um homem e, se ele tiver um público, este será de Homens, e os Homens devem ingressar em nossas histórias como tais, e não meramente transfigurados ou parcialmente representados como Elfos, Anões, Hobbits, etc. Mas eles permanecem periféricos — recém-chegados e, por muito que cresçam em importância, não são atores principais. (Carta 131, para Milton Waldman, de 1951).

Nesse mesmo sentido, Tolkien ressalta que os homens são apenas coadjuvantes nas grandes histórias dos elfos. Esse se torna um grande diferencial da mitologia tolkieniana, já que em mitologias tradicionais o homem ou os deuses são os protagonistas. É nesse sentido que em carta o autor afirmou o seguinte:

miticamente essas histórias são Elfocêntricas, não antropocêntricas, e os Homens apenas aparecem nelas, no que deve ser um ponto muito tempo depois de sua Chegada. (Carta 212, rascunho de carta para Rhona Beare, 14 de outubro de 1958).

Em nota dessa mesma carta, Tolkien explica que é muito difícil os humanos escreverem sobre os Elfos, justamente pelo fato de que não se tem uma aproximação com essa cultura por muitos anos. Assim, caberia aos próprios elfos escreverem sobre sua própria história.

No Silmarillion, os primeiros escritos se concentram nas histórias dos elfos puramente e depois se tornam voltadas aos homens. Quando tratam sobre heróis humanos se tornam mais antropocêntricas, como no Akallabêth. Outros exemplos são os contos relacionados a Beren e Lúthien e os Filhos de Húrin. Do mesmo modo, O Hobbit e O Senhor dos Anéis apresentam menor presença dos elfos, porém conta com relatos dos homens e hobbits. Os elfos passam a ser periféricos na história central.

Na narrativa, tão logo a questão torne-se “historia” e não mítica, sendo de fato literatura humana, o centro de interesse deve ser transferido para os Homens (e suas relações com os Elfos ou outras criaturas). Não podemos escrever histórias sobre Elfos, os quais não conhecemos intimamente; e se tentarmos, simplesmente transformaremos Elfos em homens. (Carta 212, rascunho de carta para Rhona Beare, 14 de outubro de 1958).

É possível fazer uma clara divisão entre os estilos de cada obra de Tolkien. O Silmarillion conta as histórias em que os elfos foram protagonistas na luta contra Morgoth, o grande mal que desejava o domínio da Terra-média. Enquanto no período em que se passa O Senhor dos Anéis os elfos estão em retirada da Terra-média. Seu poder já não era mais como o de muitos anos e sua glória parecia irrecuperável.

Nesse mesmo sentido, ao ser questionado sobre O Hobbit, Tolkien afirma que esse livro teria conexão com outras lendas antigas que havia escrito, coloca de certa forma em ordem cronológica:

O Silmarillion, que é virtualmente uma história dos Eldalië (ou Elfos, por uma tradução não muito precisa), de sua ascensão até a Última Aliança e a primeira derrubada de Sauron (o Necromante): isso o levaria quase ao período de “O Hobbit”. (Carta 114, para Hugh Brogan, em 7 de abril de 1948)

Como dito, as primeiras histórias do Silmarillion são centradas no que os elfos entendiam sobre suas origens e como o mundo foi criado. E as histórias do Hobbit e O Senhor dos Anéis apresentam elementos humanos. Sendo que a Guerra do Anel apresenta combinações das lendas dos elfos:

“Assim como presume-se que as Lendas elevadas do início sejam a visão das coisas através de mentes Élficas, a história intermediária do Hobbit assume um ponto de vista praticamente humano — e a última história combina-os”. (Carta 131, para Milton Waldman, de 1951).

Nesse aspecto, os elfos são as figuras principais das histórias do Silmarillion. Resta saber sob qual perspectiva esses contos foram escritos, dentro do legendarium. Investiga-se dentro da ideia de autoria ficcional quem seriam os escritores das histórias dos elfos, se foram os humanos ou os próprios elfos.

 

O elfocentrismo no Silmarillion publicado

Após o falecimento de J.R.R. Tolkien seu filho editou os manuscritos e publicou O Silmarillion. Diversas decisões editoriais foram feitas para manter a obra mais coerente possível. Especialmente com uma consistência em relação ao que já havia sido publicado, em especial O Senhor dos Anéis.

A autoria ficcional foi quase suprimida por completo. Os nomes daqueles que escreveram os contos foram eliminados na edição final. Mas mesmo assim Christopher Tolkien decidiu que a ideia do elfocentrismo permaneceria no livro, tendo em várias passagens exemplos de que tais histórias apresentam visões dos elfos, tal como Tolkien pretendia.

No final do Ainulindalë está demonstrado que as origens dos tempos e do universo foram contadas pelos Valar (os deuses) diretamente aos elfos que tiveram contato com esses seres em Valinor:

Assim começou a primeira batalha dos Valar com Melkor pelo domínio de Arda; e sobre esses tumultos, os elfos sabem pouquíssimo, pois o que foi aqui declarado teve origem nos próprios Valar, com quem os eldalië falavam na terra de Valinor e por quem foram instruídos. (O Silmarillion, p.12).

Os Valar, ou os deuses, viviam em um lugar distante da Terra-média e do contato humano. Somente os elfos tiveram contato direto com esses seres celestiais e a partir desse contato é que os relatos de como o mundo e tudo surgiu foi contado. Os elfos eram imortais e por isso a lembrança daqueles que estiveram com os Valar era sempre presente, porém o registro pareceu necessário em tempos de guerra contra Morgoth, o senhor do escuro.

Basicamente entre os elfos da Terra-média havia essa crença e convicção do contato direto entre elfos e os Valar, pois muitos dos que estavam ali estiveram nas terras imortais. O Valaquenta igualmente é um relato feito pelos elfos. O próprio subtítulo apresenta essa informação “Valaquenta: Relato dos Valar e dos Maiar, segundo o conhecimento dos eldar” (O Silmarillion, p.15).

O Valaquenta é um breve relato de como seriam os Ainur e como os elfos os percebiam e entendiam. Não significa que essa seja a fonte completa e definitiva do que eles seriam, pois reflete o que os elfos sabiam, dentro de um conhecimento limitado.

São esses os nomes dos Valar e das Valier, e aqui se descreve por alto sua aparência, como os eldar os viram em Aman. Mas, por mais belas e nobres que fossem as formas dos Filhos de Ilúvatar, elas não passavam de um véu a encobrir sua beleza e seu poder. E, se pouco se diz aqui de tudo o que os eldar souberam outrora, isso não é nada em comparação com seu verdadeiro ser, que remonta a regiões e eras muito além do alcance de nossa mente. (O Silmarillion, p.21)

O Início do Quenta Silmarillion ecoa a autoria ficcional logo no início com a frase “Diz-se entre os sábios…”[5] .E também de forma semelhante “Dizem que no início...”[6]. E de forma clara expressa que os grandes feitos tratados naquele livro são relacionados aos elfos Noldor:

Mais tarde, os noldor voltaram a Terra-média, e este relato fala principalmente de seus feitos. Por isso, os nomes: e o parentesco dos príncipes podem ser aqui descritos na forma que esses nomes assumiram no idioma dos elfos de Beleriand.  (O Silmarillion, p.63).

Enquanto o Ainulidalë e o Valaquenta são registros feitos de acordo com relatos de encontros dos elfos com os Valar, o Quenta Silmarillion é o relato dos elfos que estavam na Terra-média e por isso existe ainda mais limitações quanto as informações.

A não onisciência dos relatos dos elfos

Os relatos dos elfos têm um limite de conhecimento. Por serem como registros históricos existe a preocupação de ter sido escrito apenas os fatos que foram presenciados por outros elfos ou humanos. Dessa forma, existem muitas informações que não foram registradas ou que não se sabia algo definitivo.

Isso traz uma ideia de realidade a toda a obra. Dando uma maior semelhança ao que está escrito como se fossem registros de fato. Não se trata de autores que tinham o conhecimento total dos fatos em tempo e espaço. Assim, em diversos trechos essa ausência de informações pode ser encontrada, como exemplo: “do destino de Eluréd e Elurín não há relato algum” (O Silmarillion, p.301). Outro exemplo “Bereg conduziu mil indivíduos do povo de Bëor na direção sul, e eles desapareceram dos relatos daqueles tempos” (O Silmarillion, p.180).

O trecho seguinte expressamente mostra a ideia da não onisciência dos relatos dos elfos:

Sobre a marcha do exército dos Valar até o norte da Terra-média, pouco foi contado em qualquer relato. Pois, entre eles, não seguia nenhum daqueles elfos que haviam morado e sofrido nas Terras de Cá e que escreveram as histórias daquele tempo ainda hoje conhecidas. E notícias desses fatos eles só tiveram muito tempo depois, por meio de parentes, em Aman. (O Silmarillion, p.320)

Os relatos são feitos por aqueles que presenciaram algo, ou que escutaram de uma testemunha. Quando não há relatos permanecem as lacunas de informações, pelo obviedade de que não se registra algo que não se tem algum indício.

 

A origem dos anões segundo os elfos

A origem dos anões é um caso interessante de ser analisado e que tem relação com a ideia do elfocentrismo. A origem dos Anões não está presente na música dos Ainur e não está no Valaquenta. E é por isso que é incluída no Quenta Silmarillion, como forma secundária em relação aos elfos, que são os primogênitos de Ilúvatar. Nesse relato do segundo capítulo do Quenta Silmarillion os anões colocados como uma desobediência de Aulë em relação a Ilúvatar, porém acaba sendo perdoado por esse que decide permitir que os anões existissem.

Inicialmente os elfos que viviam em Valinor não tiveram uma aproximação intensa com os anões. Como se trata de um relato feito pelos elfos, que posteriormente tiveram desentendimentos com os anões, nada mais natural que retratar a origem desses seres como sendo não tão virtuosa quanto a deles próprios.

O início da frase é sempre voltado a ideia de que era uma lenda “Dizem que no início os anões foram feitos por Aulë na escuridão da Terra-média” (O Silmarillion,p.40). Na carta 212 Tolkien menciona que “essa é a lenda élfica da criação dos anões”. Ou seja, a origem dos anões no Silmarillion é derivada de lendas dos elfos, não sendo necessariamente o que realmente tenha ocorrido, embora os elfos assim acreditassem. Essa incerteza quanto as origens dos anões é evidenciada nos apêndices de O Senhor dos Anéis:

A respeito da origem dos anões histórias estranhas são contadas tanto pelos eldar quanto pelos próprios anões, mas, uma vez que essas coisas se situam longe no passado, pouco se fala sobre elas aqui. (O Senhor dos Anéis, O Retorno do Rei, Apêndice).

Portanto, entre os elfos havia variações de suas lendas (algo bem natural em mitologias) e existiam outras lendas entre os próprios anões. Porém o pouco que se sabe sobre a história e cultura dos anões parte do que foi dito de Gimli e anotado no Livro Vermelho.

De forma semelhante, outro exemplo que pode ser analisado é a origem dos Ents. Tolkien expressa comentários a respeito e sua conexão com a origem dos anões, dando como exemplo a opinião de Galadriel sobre o tema:

Ninguém sabia de onde eles (Ents) vieram ou apareceram pela primeira vez. Os Altos Elfos diziam que os Valar não os mencionaram na “Música”. Mas alguns (Galadriel) eram [da] opinião de que, quando Yavanna descobriu a misericórdia de Eru para com Aulë na questão dos Anões, ela suplicou a Eru (através de Manwë), pedindo que desse vida a seres feitos de coisas vivas, não da pedra, e que os Ents ou eram almas enviadas para habitarem árvores, ou então que lentamente assumiam a semelhança de árvores devido ao seu amor inato pelas árvores. (Carta 247, para Colonel Worskett, 20 de setembro de 1963).

Assim, a parte inicial do Silmarillion que narra sobre as origens do mundo e de suas criaturas (Ainulindalë, Valaquenta e primeiros capítulos do Quenta Silmarillion) são vistas como as cosmogonias, enquanto que os feitos seguintes são como as lendas heroicas, em que existe uma maior sensação de realidade e maior concretude nos relatos.

NOTAS: 

[1] Ver: Carta 25, para o editor do “Observer”, que foi impressa no Observer em 20 de fevereiro de 1938.
[2] Carta 131, para Milton Waldman, 1951.
[3] Carta 144, para Naomi Mitchison, em 25 abril de 1954.
[4] Carta 181, para Michael Straight, fevereiro de 1956.
[5] O Silmarillion, p.27.
[6] O Silmarillion, p.40.

Diversas

Falece Robert Hardy, aluno de Tolkien e Lewis e ator de Harry potter

Robert Hardy, que foi aluno de J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis e também ator nos filmes de Harry Potter, faleceu hoje (03 de agosto de 2017) conforme informou sua família. Hardy tinha 91 anos e uma carreira brilhante em filmes e séries, bem como nos campos da linguística e história.

Timothy Sydney Robert Hardy, nascido em 29 de outubro de 1925, começou sua carreira como ator aparecendo na peça Henry V, de William Shakespeare e na TV em 1960 atuando em An Age of Kings. Também na TV, interpretou Siegfried Farnon na série britânica de longa duração All Creatures Great and Small.

Durante seus estudos universitários, entre 1943 e 1944 ele teve como tutor pessoal em literatura inglesa, o professor C.S. Lewis. E após isso teve também como professor de Anglo-saxão J.R.R. Tolkien. Com a Segunda Guerra Mundial, Hardy serviu ao seu país nas forças aéreas britânicas. Realizou treinamentos no estado do Texas nos Estados Unidos. Com o fim da guarra continuou seus estudos e se graduou.

Hardy lembrava de sua época de estudante com Tolkien. Em entrevista concedida em 2011 para a BBC de Londres ele lembra do seu primeiro dia de Aula.

Certa vez seu professor chegou na sala pela primeira vez e colocou seis xícaras na mesa. E cobrindo os olhos pediu a que cada um dos estudantes falasse por mais ou menos um minuto. Verificando os sotaques de cada aluno, Tolkien identificou com precisão completa de qual parte do país eles vieram.  Sobre Hardy Tolkien disse “Robert Hardy é evidentemente das fronteiras galesas – Shropshire, Montgomeryshire, mas falou com uma lamentável influência de Londres”. E rindo Hardy disse “Ele estava absolutamente certo”

Robert Hardy interpretou em várias oportunidades Churchill e nos filmes da série Harry Potter o personagem Cornelius Fudge, ministro da magia.

Segundo seus filhos Emma, Justine e Paul “Pai também é lembrado como um linguista meticuloso, um ótimo artista, um amante da música e um campeão da literatura, bem como um respeitado historiador, e um importante especialista em arcos longos”.

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Se você é fã de Harry Potter recomenda-se a leitura desse artigo AQUI.

Sobre Livros

Lançado o livro “J.R.R. Tolkien the esperantist Before the arrival of Bilbo Baggins”

Foi lançado hoje (14 de julho de 2017) o livro J. R. R. Tolkien the Esperantist. Before the arrival of Bilbo Baggins (J.R.R. Tolkien o Esperantista. Antes da chegada de Bilbo Bolseiro). Depois de sua edição original em italiano J. R. R. Tolkien l’esperantista. Prima dell’arrivo di Bilbo Baggins, agora é publicada em Inglês.

Publicado pela editora Cafagna, J. R. R. Tolkien the Esperantist  é uma coletania de ensaios de renomados estudiosos de Tolkien: Oronzo Cilli, Arden R. Smith; Patrick H. Wynne. O livro incluí o prefácio de John Garth e contribuição de Tim Owen, secretário da Esperanto Association of Britain (Associação Esperantista Britânica).

As informações oficiais do lançamento do livro, fornecidas ao site Tolkien Brasil pelo autor Oronzo Cilli, são as seguintes:

O livro contém estudos de Arden R. Smith, Patrick H. Wynne e Oronzo Cilli, que restabelecem as ligações que existiam entre o autor de O Senhor dos Anéis, J. R. R. Tolkien e a língua planejada Esperanto, criada por L. L. Zamenhof.

O ensaio de Smith e Wynne, publicado originalmente na revista Anglo-americana Seven (2000), apresenta os primeiros experimentos de Tolkien com as línguas artificiais (Animalico, Nevbosh e Naffarin) e analisa em profundidade seu encontro inicial com o Esperanto, como mencionado em um caderno de 1909, que ele chamou de “Livro do Foxrook”. Os dois estudiosos americanos analisam com precisão e visão excepcional todos os conceitos e símbolos observados por Tolkien refletindo sobre o seu ensaio “A Secret Vice” [Um Vício Secreto], publicado a título póstumo por seu filho, Christopher.

O ensaio de Cilli abrange dois períodos da vida de Tolkien, começando com o período de 1907 a 1909, em que Tolkien encontrou o esperanto pela primeira vez em sua juventude, através do corpo de treinamento dos oficiais e do movimento escoteiro de Lord Baden-Powells. O segundo período abrange 1930 a 1933 e o envolvimento de Tolkien no movimento esperantista britânico, graças ao surgimento de novas informações até então desconhecidas. Cilli começa com a celebração do Congresso Mundial de Esperanto em Oxford, em 1930, que contou com a presença do Inkling Ronald Buchanan McCallum e termina com o Congresso britânico de Esperanto de Oxford, em 1933, no qual Tolkien foi nomeado como Patrono. Graças à pesquisa de Cilli, está incluído um documento anteriormente desconhecido em estudos de Tolkien, The Educational Value of Esperanto, assinado por Tolkien ao lado de outros acadêmicos britânicos eminentes da época.

Uma contribuição de Tim Owen da Esperanto Association of Britain ( Associação Esperantista Britânica) enriquece o livro, que acrescenta detalhes biográficos sobre Tolkien e seu interesse em línguas, e adiciona informações sobre como ele constrói seu Legendarium, fornecendo o contexto do Esperanto na época em que Tolkien o conheceu.

O Prefácio é confiado a John Garth, um dos estudiosos mais importantes da vida e obra de J.R.R. Tolkien e autor dos livros Tolkien and the Great War: The Threshold of Middle-earth (HarperCollins, 2003) e Tolkien at Exeter College (Exeter College, 2014).

O livro é importante para todos os leitores de J.R.R. Tolkien que pretendem entender mais sobre sua vida e sobre como ele desenvolveu suas próprias línguas que depois foram utilizadas no seu legendarium como a língua dos elfos, humanos e anões.

Mais informações sobre o livro podem ser lidas AQUI e o livro pode ser adquirido diretamente pela editora AQUI.

 

Mitopoeia

Nacionalismo e a mitologia para a Inglaterra de J.R.R. Tolkien

By Eduardo Stark

Uma mitologia não é apenas um conjunto de histórias que envolvem deuses e heróis. Ela é na verdade um instrumento de poder em uma sociedade organizada. Através das histórias nações foram construídas com uma base de sentimentos de nacionalidade. A partir dessas ideias de amor ao seu lugar e de fidelidade ao que se acredita que vários escritores desenvolveram obras e estudos sobre mitologias.

Nesse contexto, de modo indireto, Tolkien acabou sendo influenciado pela ideia de uma mitologia para a Inglaterra. Porém, isso não significa afirmar que ele fosse um nacionalista inglês, mas sim um patriota.

O presente texto visa apresentar uma breve noção dessa relação da ideia de nacionalidade e mitologia e evidenciar o momento em que Tolkien decide criar sua própria mitologia.

Conceito e diferenças de nacionalismo e patriotismo

Inicialmente é importante apresentar uma diferenciação entre a ideia de patriotismo e nacionalismo. Embora atualmente sejam muitas vezes utilizadas como sinônimo, essas duas tendências se diferenciam substancialmente.

O patriotismo está relacionado ao amor à pátria, ao lugar, língua e um povo. Nesse aspecto o patriotismo envolve laços culturais de um individuo que a assimila por nascimento ou por desenvolvimento de sua vida. Essa ideia tem suas origens na época da antiguidade, quando os povos se formavam e se diferenciavam por sua identidade cultural.

Enquanto o Nacionalismo é algo da era moderna que surgiu com as ideias da Revolução Francesa. Trata-se de uma ideologia (ou várias ideologias) que em sua origem tem a ideia de formar um Estado soberano, que seja independente de influências estrangeiras. Nesse sentido, tem a ideia de que cada nação tem o direito de sua auto determinação e que nenhum outra nação pode interferir naquele país.

Um conceito de nacionalismo apropriado é o disposto pelo jurista De Plácido e Silva: “assim se entende o princípio que, por uma ideia de patriotismo exagerado, pretende instituir um regime, de exclusividade nacional, a fim de que todos os problemas de ordem jurídica, política, social ou econômica se resolvam dentro do interesse da nação, sem qualquer atenção às relações de ordem internacional”. (SILVA, p.940)

Os termos se aproximam muito. Pois normalmente quem é nacionalista exerce o patriotismo. Porém, quem é patriota não é necessariamente um nacionalista.

O nacionalismo do século XIX e a importância da mitologia

Segundo e o historiador Eric Hobsbawn, a política do nacionalismo foi o intensa durante boa parte do século XIX.  Como uma decorrência das ideias da Revolução Francesa, que destacou a vinculação do cidadão em relação ao Estado. Em 1848, conhecido como a “Primavera dos Povos”, viu-se a afirmação da nacionalidade em diversas partes da Europa, em forma de movimentos revolucionários. (ver HOBSBAWN, Eric. p.138).

Esses movimentos não apenas apresentaram uma ideologia própria, mas também buscavam apresentar elementos que o justificasse através da própria cultura local. É uma ideologia que busca a identidade nacional, a noção de pertencer a um determinado laço cultural, histórico e linguístico que passa a ser regido por um único Estado.

Acontece que nem todos os países da Europa tinham essa unificação, e por isso no século XIX destacam-se, sobretudo, os momentos de unificação da Itália e da Alemanha. Deles surgiram diversas noções que repercutiram no século seguinte em formas autoritárias de governo.

Os mitos tiveram um papel fundamental para desenvolver essa identidade nacional nos países Europeus. Pois eles formam um laço cultural, simbólico e linguístico que são importantes para formar o nacionalismo.

Começando com a Grécia que lutou por sua independência do Império Otomono entre 1821 e 1832. Com o fim das batalhas os Gregos passaram a apresentar a mitologia Grega com mais força em estudos e ocorreu uma maior exploração desses mitos como forma de identidade nacional. Novos artistas passaram a explorar a temática da mitologia grega como forma de afirmação e unificação do país. E novos estudos sobre a Ilíada e Odisseia de Homero passaram a serem peças centrais daquela época.

Talvez como decorrência disso, o finlandês Elias Lönnrot escreveu o épico nacional conhecido como “Kalevala”, publicado em 1835. Nesse livro o autor reuniu o conjunto de lendas e a mitologia do povo finlandês. A obra foi tão promissora que serviu como uma das bases de nacionalismo, que posteriormente influenciou a independência da Finlândia, saindo do domínio Russo em 1917.

A Itália passou a ter uma ampliação de seus estudos mitológicos e busca de laços que unificassem aquele país. Foi nesse período que as histórias do Império Romano foram amplamente estudadas como demonstrativos do orgulho nacional de grandezas históricas e os mitos que se relacionavam, como a Eneida de Virgilio.

Na Alemanha o fenômeno nacionalista também ocorria com intensidade. O instrumento que se buscava para unificar o país estava relacionada aos mitos antigos, em especial a mitologia vinculada a lendas antigas e o conhecido Nibelungenlied (A Canção dos Nibelungos), que foi adaptado naquela época por Richard Wagner na conhecida opera “O Anel dos Nibelungos”.

Em todas as mitologias dos países citados existem as historias de como o mundo foi criado pelos Deuses, como os heróis realizaram grandes feitos em meio a batalhas e magias e finais de um período apocalíptico. Mas nem todos os países europeus tem essas mitologias. A Inglaterra, de onde J.R.R. Tolkien era nacional, não tem uma mitologia própria e isso parece ser até os dias de hoje motivo para debates naquele país.

Frodo e o Um anel
Frodo e o Um anel

O sentimento Inglês da falta da mitologia nacional

“Diferente da Grécia, a Inglaterra não tem uma mitologia de verdade. Tudo que temos são bruxas e fadas”. Essa intrigante frase é retirada do premiado filme Howards End (No Brasil: O Retorno a Howards End, 1992) dirigido por James Ivory, com participação de Anthony Hopkins. Nesse filme a personagem Margaret Schlegel (interpretada por Emma Thompson) expressa sua indignação em afirmar que o seu país não possui uma mitologia própria tal como os clássicos gregos.

O filme é baseado em um livro homônimo de E.M. Forster, publicado em 1910, que retrata aquela mesma época, conhecido como período Eduardiano (reinado de Eduardo VII de 1901 a 1910). Nele é demonstrado que os ingleses dessa época constantemente tratavam sobre temas como “Goblins” com uma certa naturalidade, porém com um constante questionamento.

“E os goblins, eles realmente não estiveram lá? Eram apenas os fantasmas da covardia e incredulidade? Um impulso humano saudável poderia dissipa-los? Homens como o Wilcoxe, ou o ex-Presidente Roosevelt, diriam que sim. Beethoven entendia melhor. Os goblins realmente tinham estado lá. Eles poderiam voltar e eles voltaram.” (FORSTER, p.36)

A obra de Forster reflete os ingleses de seu tempo. A sociedade em mudanças e pretendendo alcançar novos patamares intelectuais em um período anterior as grandes guerras mundiais. Esse aparente vazio dos Ingleses parece ser algo comum, especialmente para aqueles que tem um certo nacionalismo e busca de justificativas intelectuais. No livro Forster expressa esse sentimento com maestria:

“Por que a Inglaterra não tem uma grande mitologia? Nosso folclore nunca avançou além da superficialidade, e as maiores melodias sobre o nosso país são todas emitidas pelos tubos da Grécia. Profunda e verdadeira quanto a imaginação nativa pode ser, parece ter falhado aqui. Ela parou com as bruxas e fadas e não pode vivificar uma fração de campo do verão, ou dar nomes a meia dúzia de estrelas. A Inglaterra ainda aguarda o momento supremo de sua literatura, para o grande poeta que a deve expressar, ou, melhor ainda para os milhares de pequenos poetas cujas vozes passarão em nossa conversa comum.” (FORSTER, p.283)

Nesse trecho destacado, Forster demonstra claramente que a Inglaterra não tem uma mitologia e que isso é necessário para o país, sendo que no futuro algum grande escritor irá apresentar “o momento supremo de sua literatura”.

Curiosamente, nos anos 1910 e 1911, quase que repercutindo esse questionamento (mas sem precisamente ter tido contato com o livro de Forster), o então jovem estudante J.R.R. Tolkien iniciava suas primeiras leituras de mitologias setentrionais. E foi a partir dessas leituras que ele teve a mesma insatisfação apresentada por Forster: “A Inglaterra não tem uma mitologia própria”. Foi a partir disso que Tolkien decidiu criar um corpo de lendas e histórias para seu país, que mais tarde seriam um grande sucesso mundial no seu expoente “O Senhor dos Anéis”.

J. R. R. Tolkien jovem soldado da Primeira Guerra Mundial
J. R. R. Tolkien jovem soldado da Primeira Guerra Mundial

A percepção de J.R.R. Tolkien sobre a falta de mitologia inglesa

Nas primeiras décadas do século XX, ao ter acesso ao Kalevala, Tolkien foi altamente influenciado pelos escritos de Elias Lönnrot. Foi assim que decidiu realizar seus estudos e escreveu ensaios e composições relacionadas a mitologia finlandesa. Nessa época é que ele teve as primeiras ideias da falta de mitologia para a Inglaterra, como ele atesta da seguinte forma:

Contendo-me em virar as páginas dessas baladas mitológicas, cheias daquele substrato primitivo que a literatura Europeia, no geral, tem continuamente aparado e reduzido, durante muitos séculos, com diferente e prévia completude entre diferentes povos Gostaria que nos tivesse restado mais disso – algo do mesmo tipo que pertencesse aos ingleses. Mas este meu desejo não se deve a um motivo terrível e fatal, não está adulterado pela ciência, está isento de toda suspeita de antropologia”. (TOLKIEN, A História de Kullervo, p. 104).

Comentando sobre essa passagem Verlin Flieger anota que a observação de Tolkien foi relacionada “ao movimento de mito e nacionalismo que se espalhou pela Europa ocidental e as ilhas ao longo do século XIX e no começo do século XX, que foi detido pela guerra de 1914”. (TOLKIEN, A História de Kullervo, p.126).

Essa percepção de ausência da mitologia nacional incomodava Tolkien, tal como acontecia entre os ingleses que buscavam literatura do mesmo estilo. Sobre isso Tolkien comenta, em carta para Milton Waldman:

Desde cedo eu era afligido pela pobreza de meu próprio amado país: ele não possuía histórias próprias (relacionadas à sua língua e solo), não da qualidade que eu buscava e encontrei (como um ingrediente) nas lendas de outras terras. Havia gregas, celtas e românicas, germânicas, escandinavas e finlandesas (que muito me influenciou), mas não inglesas, salvo materiais de livros de contos populares empobrecidos. (Carta 131 para Milton Waldman, 1951)

Evidente que a cultura Inglesa é muito rica em literatura. Muitos se valem das histórias do Rei Artur como forma de mito nacional, porém, Tolkien rejeita a ideia de que essas lendas possam ser consideradas como mitos genuinamente apenas ingleses.

É claro que havia e há todo o mundo arthuriano mas este, poderoso como o é, foi naturalizado imperfeitamente, associado com o solo britânico mas não com o inglês; e não substitui o que eu sentia estar faltando. Por um lado, sua “faerie” é demasiado opulenta, fantástica, incoerente e repetitiva. Por outro lado e de modo mais importante: está envolta (e explicitamente contém) a religião cristã. (Carta 131 para Milton Waldman, 1951)

Assim, as lendas arthurianas segundo Tolkien não são propriamente inglesas e são mais derivadas da religião cristã. Não uma cosmogonia ou mesmo tempo apocalíptico nessas lendas, pois elas integram um ciclo de lendas medievais relacionadas ao cristianismo e uma certa relação com os celtas.

O amor à Inglaterra de J.R.R. Tolkien e as Guerras Mundias

Em 28 de Julho de 1914 teve inicio a chamada Primeira Guerra Mundial. O mundo acadêmico e amigável de Tolkien se mudou completamente. No mês seguinte seus amigos e seu irmão Hilary se juntaram ao exército inglês para combater a Alemanha.

Por causa da guerra apenas 24 pessoas permaneceram em toda a Universidade de Oxford. Tolkien permaneceu até o fim de seus estudos em 10 de junho de 1915. Após treze dias ele se alistou no exercito britânico para ir lutar na batalha mais sangrenta da história inglesa: a Batalha de Somme.

Em período de guerras é natural que as pessoas em países ameaçados passem a se tornarem ainda mais nacionalistas. Os valores de defesa passam a ampliar esse sentimento como se fosse um escudo intelectual e cultural. O gosto por seu país deve ter sido ampliado ainda mais em Tolkien com os treinamentos militares.

J. R. R. Tolkien na primeira guerra mundial
J. R. R. Tolkien na primeira guerra mundial

O sentimento de amor ao seu país e a relação com a ameaça da guerra é evidenciado novamente no período em que O Senhor dos Anéis estava sendo escrito, na época da Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido em carta para seu filho Christopher Tolkien ele afirma:

Pois amo a Inglaterra (não a Grã-Bretanha e certamente não a Commonwealth britânica (grr!)) e, se eu estivesse em idade militar, eu estaria, imagino, resmungando em um serviço de combate e disposto a ir até o fim — sempre com a esperança de que as coisas possam acabar de um modo melhor para a Inglaterra do que parece estar acontecendo. (Carta 53 para Christopher Tolkien, 9 de dezembro de 1943).

O autor do Hobbit demonstra que novamente estaria disposto a lutar na Segunda Guerra Mundial se tivesse a idade militar, demonstrando sua vontade de defender o país. Nesse trecho vemos que Tolkien tinha um gosto especificamente pela Inglaterra, que é uma nação dentro do conjunto político que forma o Reino Unido. Em outra carta ele novamente demonstra o seu carinho pelo país:

“Ainda há alguma esperança de que, ao menos em nossa amada terra da Inglaterra, a propaganda derrote a si mesma e produza, inclusive, o efeito contrário”. (Carta 77 para Christopher Tolkien, 31 de julho de 1944).

Embora Tolkien demonstre um grande apego ao seu país, isso não o torna necessariamente um nacionalista como aconteceu com escritores do século XIX, afetados pelos pensamentos iluministas. Na verdade Tolkien tinha uma visão de que o Estado era um ente criado que de certa forma atrapalhava a vida cotidiana e pacifica. O patriotismo de Tolkien parece estar mais relacionado ao sentimento de honra, de defesa de sua cultura e modo de vida do que em relação a um governo ou Estado.

Um comparativo que pode ser feito é a relação dos Hobbits frente ao ataque das forças de Mordor. Os hobbits não tinham verdadeiramente um Estado consolidado, nos moldes do que se formou nos séculos XIX e XX. Não havia um líder poderoso ou uma figura impositiva de normas. Os Hobbits tinham um apego a sua terra, ao seu modo de vida, a sua cultura etc. Esse amor a raiz é que pode ser visto como uma semelhança da ideia de Tolkien em relação a seu amor pela Inglaterra.

Uma mitologia para a Inglaterra

Com os seus estudos das mitologias finlandesas e nórdicas Tolkien começou a ter a ideia de que poderia, como forma de entretenimento pessoal, escrever uma simulação de uma mitologia para o seu próprio país. Em carta para Milton Waldman, Tolkien explica com detalhes essa ideia de criar uma mitologia para a Inglaterra:

Não ria! Mas, certa vez (minha crista há muito foi baixada), eu tinha em mente criar um corpo de lendas mais ou menos associadas, que abrangesse desde o amplo e cosmogônico até o nível do conto de fadas romântico — o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor sorvendo esplendor do vasto pano de fundo —, que eu poderia dedicar simplesmente à Inglaterra, ao meu país. Deveria possuir o tom e a qualidade que eu desejava, um tanto sereno e claro, com a fragrância de nosso “ar” (o clima e solo do noroeste, tendo em vista a Grã-Bretanha e as partes de cá da Europa: não a Itália ou o Egeu, muito menos o Oriente) e, embora possuísse (caso eu pudesse alcançá-la) a clara beleza elusiva que alguns chamaram de céltica (embora ela raramente seja encontrada em antigos materiais célticos genuínos), ele deveria ser “elevado”, purgado do grosseiro e adequado à mente mais adulta de uma terra já há muito saturada de poesia. Desenvolveria alguns dos grandes contos na sua plenitude e deixaria muitos apenas no projeto e esboçados. Os ciclos deveriam ligar-se a um todo majestoso e ainda assim deixar espaço para outras mentes e mãos, lidando com a tinta, música e drama. Absurdo. E claro que uma proposta pretensiosa como essa não se desenvolveu de uma só vez. As próprias histórias eram o ponto principal. Elas surgiam em minha mente como coisas “determinadas” e, conforme vinham, separadamente, assim também as ligações cresciam. Um trabalho cativante, embora continuamente interrompido (especialmente porque, mesmo à parte das necessidades da vida, a mente esvoaçava para o outro pólo e esgotava-se na linguística); porém, sempre tive a sensação de registrar o que já estava “lá” em algum lugar, e não de “inventar”. (Carta 131 para Milton Waldman, 1951)

A ideia de criar uma mitologia para o seu país não é totalmente nova, uma vez que o alemão Jacob Grimm e o norueguês Dane Nikolai Grundtvig, tiveram uma atitude nesse sentido. Mas foi a partir de sua vontade de uma mitologia para a Inglaterra que Tolkien desenvolveu as primeiras ideias sobre a Mitopoeia, a teoria literária relacionada a criação (ou subcriação) de mitos por escritores.

Em suas obras, Tolkien deixa claro que se passam em nosso próprio mundo em um passado mitológico subcriado, com histórias das lutas de elfos, humanos, anões e hobbits contra as forças malignas de Morgoth e Sauron.

Muitos aspectos culturais ingleses foram colocados em suas histórias. A ideia era forma o conjunto de lendas pré-cristãs e mitológicas que dessem base para o surgimento da Inglaterra.

O sucesso das obras de Tolkien foi crescente, em especial na década de 60 do século XX. Milhões de pessoas espalhadas por todos os continentes do mundo passaram a ler e admirar as obras do autor inglês.

Ao que parece Tolkien se sentia um tanto satisfeito com a reconhecimento por parte de alguns leitores, como ele expressou em carta:

Tendo designado a mim mesmo uma tarefa, cuja arrogância reconheci totalmente e pela qual tremi, sendo precisamente a de restaurar aos ingleses uma tradição épica e de apresentar-lhes uma mitologia deles próprios, é maravilhoso saber que fui bem-sucedido, pelo menos com aqueles que ainda possuem o coração e a mente não-enegrecidos. (Carta 180, para o “Sr. Thompson”, 14 de janeiro de 1956).

De forma magistral, Tolkien parece ter conseguido se aproximar do que pretendia, mesmo que na época dessa carta o seus escritos de O Silmarillion ainda não tinham sido publicados.

Arda, o mundo de Tolkien
Arda, o mundo de Tolkien

A mitologia para o mundo

Como visto, as mitologias no século XIX pareciam ser utilizadas como instrumentos para unificação nacional e que essa noção, de certa forma indiretamente, acabou influenciando Tolkien na ideia de que ele deveria escrever uma mitologia para seu país. Assim, as mitologias estão vinculadas com aspectos culturas, sociológicos, históricos e linguísticos de determinados países e não existe uma mitologia global, para todo o planeta.

Segundo Joseph Campbell haverá uma nova mitologia que preencherá a lacuna e representará um elemento cultural para todo o mundo. Uma mitologia sem se vincular a determinada cultura e território do globo, mas um conjunto de histórias que unifique agora todos os povos do mundo.

Os velhos deuses estão mortos ou morrendo e as pessoas em toda parte estão pesquisando e perguntando: “Qual será a nova mitologia, a mitologia dessa terra unificada como uma coisa harmoniosa? Não se pode prever a próxima mitologia mais do que se pode prever o sonho de hoje à noite, pois uma mitologia não é uma ideologia. Não é algo projetado a partir do cérebro, mas algo experimentado pelo coração, do reconhecimento das identidades ou com as aparências da natureza, percebidas com amor um “tu” onde haveria de outra forma apenas um “Isso”. (CAMPBELL, The Inner Reaches… p.19)

Com o passar dos anos, em especial com a globalização, facilitação nos meios de comunicação mundial (televisão, internet e outras tecnologias) o mundo está cada vez mais integrado. As relações internacionais são muito mais frequentes do que há cem anos atrás. Sendo assim, formam-se cada vez mais novas ideias internacionais e surgem elementos culturais além de nações. É nesse sentido que em outra oportunidade Campbell esclarece mais detalhes sobre sua ideia da nova mitologia que virá:

Os motivos básicos dos mitos são os mesmos e têm sido sempre os mesmos. A chave para encontrar a sua própria mitologia é saber a que sociedade você se filia. Toda mitologia cresceu numa certa sociedade, num campo delimitado. Então, quando as mitologias se tornam muitas, entram em colisão e em relação, se amalgamam, e assim surge uma outra mitologia, mais complexa. Mas hoje em dia não há fronteiras. A única mitologia válida, hoje, é a do planeta – e nós não temos essa mitologia. (CAMPBELL, O Poder do Mito, p. 62)

O tremendo sucesso literário de O Senhor dos Anéis pode levar a diversos questionamentos relacionados a essa ideia de Joseph Campbell da nova mitologia mundial.

Os livros de Tolkien passaram a ser não apenas uma mitologia para a Inglaterra. Eles ultrapassaram fronteiras, a ponto de… bem, vocês está lendo um artigo em Português escrito por um Brasileiro sem nenhum vínculo nacional com a Inglaterra.

Será que a obra de Tolkien pode ser vista como essa nova mitologia mundial, Tendo em vista que pessoas do mundo inteiro admiram e estudam suas obras? Ou seria a obra de Tolkien a precursora de uma nova mitologia que surgirá por um escritor (ou escritores) habilidosos?

 

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA

CAMPBELL. Joseph. O Poder do Mito. Palas Athenas, 2012.

_________________The Inner Reaches of Outer Space Metaphor as Myth and as Religion. New World Library, 2012.

CARPENTER, Humphrey, J.R.R. Tolkien, uma biografia, Martins Fontes. São Paulo, 1992.

FORSTER, E.M, Howards End, Globo, Rio de Janeiro, 2012.

GARTH, John. Tolkien and the Great War: The Threshold of Middle-Earth. London: HarperCollins, 2003.

HOBSBAWN, Eric. A Era do Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 15ª edição, 2009.

_______________Nações e Nacionalismo desde 1780. – Programa, Mito e Realidade. São Paulo: Paz e Terra, 5ª ed, 2008.

NEWMAN, Ernest. História das Grandes Óperas e dos seus compositores. Porto Alegre: Globo, 1943, volume III.

TOLKIEN, J.R.R. As Cartas de J.R.R. Tolkien. Editado por Humphrey Carpenter com assistência de Christopher Tolkien, Arte e Letra, Curitiba, 2006.

______________ A História de Kullervo. Wmf Martins Fontes, São Paulo, 2016.

Poesia

O Poema “O Clamor do Menestrel” de J.R.R. Tolkien

by Eduardo Stark

Ao concluir seu primeiro poema relacionado ao legendarium em 24 de Setembro de 1914, “A Viagem de Earendel, a estrela vespertina”, Tolkien começou a se questionar do que se tratava aquele poema. O conteúdo não havia sido desenvolvido ou planejado em forma uma narrativa coerente. Mesmo sendo o autor, o poema surgiu quase que espontaneamente para reverenciar a palavra “Earendel” que tanto o havia impressionado ao ter acesso aos versos de Cynewulf.

Quem seria aquele personagem “Earendel” e para qual direção seu barco seria conduzido e quais aventuras ele sofreria era o grande questionamento que havia em sua mente no final de 1914. Para solucionar isso, começou com pequenas anotações, tentando relacionar nomes e esquemas. Foi nesse período que fez o seu primeiro rascunho tentando vincular elementos da viagem de São Brandão com o personagem Earendel, que foi analisado anteriormente. Esse primeiro rascunho se encontra no verso de um poema e por isso associado a ele como um dos primeiros escritos do Tolkien.

Foi no inverso de 1914, quando Tolkien estava se questionando sobre Earendel, que surgiu o seu segundo poema relacionado ao Legendarium, intitulado “The Bidding of the Minstrel, from the Lay of Earendel”, aqui traduzido como “O Clamor do Menestrel, da Balada de Earendel”.[1]

O poema foi escrito em Oxford na St. John’s Street, quando Tolkien ainda permanecia na Universidade como estudante, enquanto o mundo estava aflito com o inicio da Primeira Guerra Mundial. A data do poema é imprecisa e deriva apenas de uma nota apressada do Tolkien no manuscrito indicando que foi composto no “inverno de 1914”, provavelmente nos últimos dez dias de dezembro daquele ano. Segundo Christopher Tolkien “não há nenhuma outra evidência que comprove a data” [2], assim o que determina a época de escrita do poema é a confiança na memória de Tolkien, já que não há outro modo de prova que diga o contrário (por exemplo: testemunhas, publicação, registro, etc).

Embora tenha sido escrito em 1914, em anos seguintes Tolkien fez alterações, mudou títulos, dividiu o poema em partes separadas. Sobre a condição dos manuscritos do poema e sobre seu processo de escrita, Christopher Tolkien comenta o seguinte:

“O poema era então muito maior do que se tornou, mas os trabalhos são excessivamente brutos. Eles não têm nenhum título. Ao mais antigo texto acabado um título foi apressadamente acrescentado mais tarde:aparentemente se lê “O Menestrel renuncia a música”. O título tornou-se então ‘A Balada de Earendel’ e mudou na último texto para ‘O Clamor do Menestrel, da Balada de Earendel’.Há quatro versões seguintes ao  rascunho original bruto, mas as alterações feitas neles eram leves” [3]

Segundo Christina Scull e Wayne Hammond (Reader’s Guide, p.107), por volta de 17 e 18 de março de 1915, Tolkien dividiu o poema em duas partes:“The Bidding of the Minstrel” (O Clamor do Menestrel) e “The Mermaid’s Flute” (A Flauta da Sereia). Este último poema ainda é um material inédito e permanece guardados nos arquivos em forma de manuscrito. Novamente, o autor fez uma série de revisões em O Clamor do Menestrel no período de 1920 a 1924.

Após o falecimento de Tolkien em 1973, The Bidding of the Minstrel foi publicado no livro The Book of Lost Tales, Part Two, com edição e comentários de Christopher Tolkien, em 1984. O livro é o segundo volume da serie de doze livros chamada “A História da Terra-média”, que ainda não foi traduzido oficialmente para o Português. 

Christopher Tolkien apresenta a última versão do poema, porém ressalta que os termos “Eldar” e “Elven”(Elfos) foram acrescentados em data posterior para substituir “fairies” (Fadas) e “fairy” (Fada).[4] A relação de Tolkien com os elfos viria um pouco mais tarde quando começou a desenvolver as palavras de sua língua “Qenya”. Além disso, na quinta linha o menestrel parece responder ao pedido para cantar mais sobre as histórias de Earendel “Então escute – um conto do imortal anseio pelo mar”, enquanto na versão mais recente ficou “Cante-nos – um conto do imortal anseio pelo mar” [5].

Earendil em seu barco branco…

Os Menestréis na idade média inglesa

O menestrel é uma figura que remete ao medievalismo europeu. Inicialmente eram relacionados a atividades circenses e de entretenimento. Com o tempo eles ficaram conhecidos como músicos especializados que narravam histórias de eventos antigos ou criados. A Enciclopédia Britânica apresenta uma síntese histórica sobre o termo “Minstrel” (menestrel) entre os britânicos medievais:

Os saxões, bem como os antigos dinamarqueses, estavam acostumados a manter os homens desta profissão com a mais alta reverência. Sua habilidade foi considerada como algo divino, suas pessoas eram consideradas sagradas, seu comparecimento era solicitado pelos reis, e eles estavam todos carregados com honras e recompensas. Em suma, os poetas e a sua arte se mantiveram entre eles naquela admiração grosseira que um povo ignorante mostra sempre, tal como os excede em realizações intelectuais. Quando os saxões se converteram ao cristianismo, na medida em que as letras prevaleceram entre eles, essa admiração rude começou a diminuir, e a poesia não era mais uma profissão peculiar. O poeta e o menestrel se tornaram duas pessoas. A poesia foi cultivada por homens de letras indiscriminadamente, e muitas das rimas mais populares foram compostas em lazer e reclusão em mosteiros. Mas os menestréis continuaram uma ordem distinta de homens, e ganharam seus meios de vida cantando versos com harpa nas casas dos grandes. Lá, eles ainda eram recebidos hospitaleiramente e respeitosamente, e mantinham muitas das honras concedidas aos seus predecessores os Bardos e Escaldos. E, de fato, embora alguns deles apenas recitassem as composições dos outros, muitos deles ainda compuseram músicas próprias, e provavelmente poderiam inventar algumas estrofes na ocasião. Não há dúvida de que a maioria das velhas baladas heroicas foram produzidas por esta ordem de homens. Pois, embora alguns dos romances métricos maiores possam vir da caneta dos monges ou outros, ainda assim as narrativas menores provavelmente foram compostas pelos menestréis que as cantaram. A partir das incríveis variações que ocorreram em diferentes cópias dessas peças antigas, fica evidente que eles não tinham nenhum escrúpulo ao alterar as produções do outro, e o recitador adicionava ou omitia estrofes inteiras de acordo com sua fantasia ou conveniência. (Encyclopedia Britannica, 6 ed. Vol. XIV, 1823p.275-276) 

Diante de uma grande maioria da população europeia sem conhecimento nota-se a importância dos Menestréis na cultura medieval, especialmente na preservação dos contos da época e no entretenimento dos intelectuais e o publico em geral. As músicas eram cantadas e acompanhadas de instrumentos com o estilo peculiar de cada região.

A escolha da figura de um menestrel no poema demonstra a conexão que o Tolkien havia feito em relação a história de Earendel se passar em nosso mundo, especificamente em um período medieval, tal como estava cheio de pensamentos sobre as lendas medievais de São Brandão e Orendel, e suas relações com as palavras de Cynewulf.

Os Menestréis em um manuscrito medieval

O conteúdo do poema ‘O Clamor do Menestrel’

Como parte do conjunto de poemas que tratam sobre o personagem Earendel, O Clamor do Menestrel acrescenta mais informações sobre o desenvolvimento do legendarium. Nele o autor ainda procura entender o significado da palavra e qual o sentido dela para se adequar a uma história.Tolkien começou a ter suas primeiras ideias de como seria a viagem marítima e é como se ele próprio estivesse pedindo ao menestrel que cantasse músicas sobre esse então desconhecido herói de outros tempos.

Então, os primeiros versos são um clamor, um pedido para que o menestrel cante mais sobre os acontecimentos em torno do herói mitológico Earendel “Cante-nos ainda mais de Eärendel, o viajante” (Sing us yet more of Eärendil the wandering). São apresentadas características de ele possuir um navio com remos brancos, cuja estrutura é mais engenhosa que as feitas por humanos.

Em seguida, o requerente informa um elemento do que quer ouvir, que é um conto sobre um “imortal anseio pelo mar” (immortal sea-yearning), e que “Outrora os Eldar fizeram antes da mudança da luz” (The Eldar once made ere the change of the light). Como visto o termo “Eldar” foi acrescentado posteriormente para indicar a pluralidade dos elfos, mas no original Tolkien se referia apenas a Fadas. Então, o conto que se pede ao menestrel é relacionado à imortalidade, ao mar e de uma época que não havia ocorrido a mudança da luz.

Atribui-se aos elfos a autoria desse conto de Earendel. Isso teria implicações no legendarium até o final da vida do Tolkien. Pois o autor utilizou o estilo de escrita de “um livro dentro do livro”, onde os contos das primeiras eras foram registrados pelos elfos e humanos, e a guerra do anel pelos hobbits.

Com isso o requerente descreve um pouco das viagens de Earendel, ressaltando que ele passou pelo oceano em diferentes climas e encontrou ilhas estranhas e esquecidas. Nota-se um verso diferenciado , quando se descreve o navio de Earendel como sendo pássaro branco em meio ao mar “Um petrel, um pássaro do mar, uma gema de asas brancas” (A petrel, a sea-bird, a white-wingéd gem). Não se pode afirmar que essa “gema de asas brancas” seja uma origem das pedras preciosas de O Silmarillion, mas traz ideia de ser algo luminoso, estando dentro da ideia de luz relacionada ao nome Earendel. O navio posteriormente ganhou o nome próprio de Vingelot ou Vingilótë.

A segunda parte do poema é a fala do Menestrel propriamente. Ele responde ao pedido dizendo que a música está quebrada e suas palavras estão quase esquecidas. É como se ele mostrasse que essas histórias são de tempos tão antigos que não foram preservadas devidamente seus relatos. O tempo passou e as coisas mudaram muito, pois a luz do sol ficou fraca e a lua envelheceu. Ou seja, a história de Earendel é de uma época muito antiga em que tudo ainda parecia novo no mundo, até mesmo os astros. E então surge o verso Os navios élficos estão naufragados ou cobertos de algas e podres (The Elven ships foundered or weed-swathed and rotten). Como já ressaltado, inicialmente Tolkien usou a palavra “Fadas”, mas que foi alterado depois para “Elfos”, de todo modo essa foi a primeira referência ao que conhecemos como os elfos de Tolkien em sua forma inicial.

O Menestrel demonstra um certo saudosismo em relação as histórias do passado. Algo que é constante nas histórias de Tolkien. A ideia de um passado que foi glorioso e cheio de coisas interessantes em relação a um presente que perdeu aquele encanto. Isso está inclusive presente em O Senhor dos Anéis, onde as coisas parecem estarem mudando e o tempo dos elfos está no fim na Terra-média. É nesse sentido que ele diz “O fogo e o encantamento dos corações se esfriaram” (The fire and the wonder of heart is acold). O próprio Menestrel questiona se é possível alguém narrar aqueles grandes feitos de outros tempos com a mesma qualidade, riqueza e melodias.

Em seguida, o Menestrel elogia o barco de Earendel, ressaltando sua beleza e seu brilho natural decorrente da madeira branca e como se assemelhava a um grande cisne passando no mar. Sendo a segunda parte do mesmo poema que trata sobre o navio de Earendel, pode-se imaginar que o poema tem como conteúdo principal descrever o barco do viajante e imaginar como seria suas aventuras, mas ainda não se revela qual seria essa aventura marítima.

Na última parte, o Menestrel finalmente informa que vai atender ao pedido de cantar a lenda de Earendel. Mas ele deixa claro que ele apenas fará o possível com pedaços que se lembra.

A canção que posso cantar são lembranças esvanecidas
Que no sono nasceram as douradas ilusões,
Um conto sussurrado pelas brasas enfraquecidas
De antigas coisas distantes que poucos guardam nos corações.[6]

Nesses últimos versos Tolkien deixa claro que as histórias são muito antigas, mas que poucas pessoas guardam os fragmentos do que aconteceu com Earendel. É como se o passado fosse tão distante que são apenas pálidas referencias a algo muito maior. Essa ideia permanece ainda na mentalidade de Tolkien até mesmo quando começa a escrever o Livro do Contos Perdidos (The Book of Lost Tales), onde o personagem marinheiro encontra os elfos e esses narram as histórias antigas que acabariam se tornando o que se conhece como O Silmarillion.

Breve análise comparativa com Homero e Camões

O poema de Tolkien tem aproximadamente 276 palavras, dispostas em 36 versos e duas estrofes. O estilo de rima é simplificado na variação cruzada ABAB. Seu estilo pode ser comparado a outros poemas com estilo épico. É interessante, sobretudo aos lusófonos, estabelecer um paralelo entre o poema Tolkieniano e Os Lusíadas de Luis de Camões. Ao que tudo indica Tolkien não teve contato com as obras em língua portuguesa naquela época e por isso o comparativo exposto é meramente complementar e não significa uma tentativa de mostrar uma inspiração de Tolkien em Camões.

Assim, temos que primeiramente ambas tratam de histórias de navegantes “por mares nunca de antes navegados”. Em seguida existe uma relação na forma de rimas ABABABCC em Os Lusíadas que pode auxiliar no entendimento sobre esse tipo de escrita com a língua portuguesa, como pode ser observado na estrofe 19 do Canto I:

Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Proteu são cortadas

Em relação a Homero, há uma similaridade no ato de começar o poema com alguma invocação de música a um terceiro. No poema de Tolkien é feito o pedido ao Menestrel que “Canta-nos ainda mais de Eärendel, o viajante”, enquanto que em Homero é feita uma invocação às musas divinas para que cantem ou inspirem o autor, na Iliada “Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles” e na Odisséia “Canta,ó Musa, o varão que astucioso”. Nesses primeiros versos é feita uma breve introdução do conteúdo do Canto, o que se assemelha a forma como Tolkien escreveu seu poema. Em Lusíadas esse tipo de invocação divina acontece nas estrofes 4 e 5 do Canto I, em que Camões pede inspiração para escrever às ninfas do Tejo.

NOTAS:

[1] A palavra inglesa “Bidding” é o presente particípio de “Bid”,  podendo ter vários significados na língua Portuguesa, transmitindo o sentido de “clamar, pedir, demandar, protestar, queixar, rogar, suplicar, vociferar, invocar, solicitar, requerer, chamar, comandar, reivindicar, ordenar,”. Nessa tradução a palavra escolhida foi “clamor”. Quanto a “Minstrel” é uma palavra que tem sua etimologia relacionada a “menestrel” no Médio Inglês, que por suas vez tem origem no Latim “Ministeralis”. Sendo assim o resultado da tradução para o português é: “O Clamor do Menestrel”. Poderia também ser traduzido como “O Clamor ao Menestrel”, uma vez que o poema inicia com o pedido de uma pessoa para que o Menestrel narre os feitos de Eärendel. Nas edições publicadas do poema em Espanhol o título é “La llamada del menestral” e em Francês “L’Ordonnance du ménestrel”
[2] “there is no other evidence for its date”.(p.269).
[3] The poem was then  much longer than it became, but the workings are exceedingly rough; they have no title. To the earliest finished text a title was added hastily later: this apparently reads ‘The Minstrel renounces the song’. The title then became ‘The Lay of Earendel’, changed in the latest text to ‘The Bidding of the Minstrel, from the Lay of Earendel’. There are four versions following the original rough draft, but the changes made in them were slight. (p.270).
[4] “Eldar in line 6 and Elven in line 23 are emendations, made on the latest text, of ‘fairies’, ‘fairy’”. (p.270).
[5] only that originally the minstrel seems to have responded to the ‘bidding’ much earlier — at line 5, which read ‘Then harken — a tale of immortal sea-yearning. (p.270).
[6] The song I can sing is but shreds one remembers /Of golden imaginings fashioned in sleep/A whispered tale told by the withering embers /Of old things far off that but few hearts keep.

Mitopoeia

A lenda de Hy-Brasil e a origem do legendarium de J.R.R.Tolkien

by Eduardo Stark

A palavra “Earendel” encontrada nos escritos de Cynewulf trouxe ao jovem Tolkien uma verdadeira aventura por significados e histórias. Quanto mais procurava entender a palavra ele desenvolvia ideias para seus escritos, que se tornariam o seu Legendarium.

Foi assim que, logo após escrever o poema “A Viagem de Earendel, a estrela vespertina”, começou a deixar pequenas notas de palavras escritas à mão em páginas avulsas, em que buscava interligar os significados para formar uma história coerente. Infelizmente boa parte desses primeiros escritos não foram datados, o que dificulta saber com precisão o que se passava nesse período específico.

A nota mais antiga é um pouco posterior ao poema “A Viagem de Earendel, a estrela vespertina”, que Christopher Tolkien o publicou no segundo volume da série História da Terra-média, conhecido como The Book of Lost Tales parte 2 (p.261). Segue abaixo a nota feita por Tolkien, separada por tópicos para evidenciar as ideias que estavam sendo desenvolvidas:

• O barco de Eärendel passa pelo norte.
• Islândia. [Adicionado na margem: volta do vento norte]
• Groenlândia e as ilhas selvagens: um poderoso vento e uma crista de grandes ondas o levam a climas mais quentes, de volta ao vento oeste.
• Terra de homens estranhos,
• terra da magia.
• A casa da Noite.
A Aranha.
• Ele escapa das redes da Noite com alguns camaradas, vê uma grande ilha montanhosa e uma cidade dourada [adicionada na margem: Kôr]
• o vento o sopra para o sul.
Homens-Árvore,
• moradores do sol,
• especiarias,
montanhas de fogo,
• mar vermelho: Mediterrâneo (perde seu barco [viaja a pé pelas selvas da Europa?]) Ou do Atlântico.
• Casa.
• Os anos passam.
• Tem um novo barco construído.
• Dá adeus à sua terra do norte.
• Veleja para o oeste novamente para a borda do mundo, assim como o sol mergulha no mar.
• Ele navega no céu e não retorna mais para a terra.

Vemos nessas notas alguns termos destacados por se manterem desde o início dos rascunhos até alcançar as versões mais antigas do legendarium de Tolkien, embora tenham sofrido severas modificações ou incremento de informação.

Os comentários a seguir tem o objetivo de esclarecer a importância desses termos e mostrar o seu contexto, possibilitando uma maior amplitude de informação sobre como Tolkien estava desenvolvendo gradualmente a sua mitologia.

A Viagem de São Brandão, o navegante

Primeiramente Earendel, que é o personagem protagonista das aventuras. O nome do personagem derivado do poema anglo-saxão Christ de Cynewulf e sua relação com Orendel, herói marinheiro das lendas germânicas. Uma vez que os manuscritos mais antigos que narram a história de Orendel são do século XII, tendo sobrevivido até nosso tempo apenas cópias do ano de 1512, se tratando de uma lenda registrada tardiamente, o que não significa necessariamente que sejam desvinculadas de sua época e autoria, mas tendo em vista que se busca as histórias relacionadas a Inglaterra, verifica-se que Tolkien tenha começado a procurar outras lendas relacionadas a viagens marítimas daquela região.

O fato de Tolkien ter sido um católico reforça ainda mais o fato dele ter contato com a literatura dos santos da idade média. A literatura católica era uma constância em sua vida, sobretudo pelas indicações de livros por seu tutor, o Padre Francis Morgan. Foi assim que teve contato com as lendas relacionadas às viagens de São Brandão, que podem ser consideradas como possíveis fontes para o desenvolvimento inicial da personagem Earendil.

Na nota citada acima a viagem inicialmente passa pela Islândia e a Groelândia que se situam ao norte das ilhas britânicas, e logo depois Earendel encontra uma “terra da magia”.Esse foi o mesmo trajeto feito por São Brandão até descobrir uma terra maravilhosa e mágica.

Manuscrito medieval que ilustra a viagem de São Brandão e sua parada em cima da baleia

O São Brandão ou Brandão de Ardfert e Clonfert, também Barandão ou Borondão, foi um monge beneditino irlandês que viveu entre 484 a 577 d.c, conhecido por ter realizado diversas viagens pelo norte e noroeste das ilhas britânicas. Ele é o protagonista de uma lendária viagem a uma terra jamais explorada, que era chamada de terra prometida.

A sua biografia, a Vita Sancti Brendani, escrita pela primeira vez por volta do século X, se tornou um dos manuscritos mais lidos, traduzidos e copiados durante a alta Idade Média. Foi a partir desses manuscritos que nasceram diversas lendas sobre viagens marítimas para o Oeste que aparecem na maioria dos povos da costa ocidental europeia.

As viagens de São Brandão estão cheias de aventuras em diversos lugares, onde encontra criaturas exóticas. Confunde uma baleia com uma ilha e junto com os outros monges faz uma fogueira. Depois de dessas aventuras o santo finalmente consegue chegar a terra prometida. A descrição do momento remete em muitos pontos a ideia de Tolkien em relação a escuridão que se enfrenta antes de chegar a ilha iluminada:

Levaram consigo provisões por quarenta dias, pois seu curso se direcionava para o oeste naquele período. O procurador zelou por eles orientando o caminho. No final dos quarenta dias, no final da tarde, uma nuvem densa os ofuscou e era tão escura que não podiam ver um ao outro. Então o procurador disse para São Brandão: “Padre, você sabe que escuridão é essa?” E o santo respondeu que não sabia. “Esta escuridão”, disse ele, “envolve a ilha que você procurou por sete anos. Você verá em breve que a entrada dela”. Após ter se passado uma hora, uma grande luz brilhou ao redor deles, e o barco estava perto da costa. Quando desembarcaram, viram uma terra, extensa e espessa, com árvores, carregadas de frutas, como na estação do outono. Todo o tempo que atravessavam aquela terra, durante a sua permanência, não havia noite, pois havia uma luz que sempre brilhava, como a luz do sol no meridiano. E durante os quarenta dias eles observaram a terra de várias direções e não conseguiram encontrar os seus limites. (MORAN, p.101).

A ideia de uma terra a oeste e que após enfrentar uma escuridão se encontra a iluminação, permaneceram como fontes na primeira nota relacionada a história de Earendel. É nesse sentido que Tolkien coloca como tendo a ilha uma “cidade dourada”, que mais tarde ele chamaria de Kôr.

Destacam-se quatro elementos que são comuns entre a história de São Brandão e o primeiro rascunho de Tolkien sobre a viagem de Earendel:

1 – Viagem marítima inicia em direção ao norte
2 – Passa pela Islândia e a Groelândia
3 – A direção da viagem passa para o oeste
4 – Encontra uma escuridão intensa
5 – Acha uma cidade que é iluminada
6 – A terra é abençoada

Há diversos registros do contato de Tolkien com a história de São Brandão. Inicialmente o santo é mencionado no poema “The Nameless Land” (A Terra Inominada) que foi escrito em 1924 e publicado em 1927 (‘Such loveliness to look upon /Nor Bran nor Brendan ever won’). Em notas para “The Lost Road” (A Estrada Perdida) escrito por volta de 1936 (‘the holy Brendan’).

Por volta dos anos de 1945 ou 1946, Tolkien escreveu um poema intitulado “The Ballad of St Brendan’s Death” (A Balada da Morte de São Brandão) que depois foi renomada como “The Death of St. Brendan” (A Morte de São Brandão), posteriormente alterou diversas vezes e escreveu quatro versões finalizadas, sendo a última versão intitulado “Imram” que foi publicada em 3 de dezembro de 1955 no Time and Tide.

Imram apresenta influências em relação a mitologia de Tolkien, especialmente quanto a ideia da estrada perdida que se direciona ao terras abençoadas. (HAMMOND, SCULL. p.480). Nesse aspecto, a concepção de terra sagrada do oeste permaneceram, chegando a sua forma conhecida como o continente Aman, onde habitavam os Valar e os elfos.

Até mesmo em relação ao título do poema “A Viagem de Earendel, a estrela vespertina” traz a palavra “Viagem” que remete a ideia de viagens marítimas e também ao próprio título das histórias de São Brandão, chamadas de Nauigatio sancti Brendani abbatis “A Viagem de São Brandão, o abade”.

A lenda de São Brandão também influenciou as histórias do amigo de Tolkien, o C.S. Lewis em um de seus livros da série Crônicas de Nárnia, chamado ‘A Viagem do Peregrino da Alvorada’ (The Voyage of the Dawn Treader), embora a viagem seja em direção ao Oriente ao invés do Oeste. Em um de seus caderno Lewis descreve seu livro como uma viagem em que “várias ilhas ([da] Odisseia e Santo Brandão) podem se alcançar” (HOOPER, p. 403).

São brandão em direção a terra sagrada

A lenda de Hy-Breasil ou Hy-Brasil

A lenda de São Brandão ficou conhecida por toda a Europa. Diversos outros escritos foram feitos recontando as mesmas histórias. Outros foram modificados e até ampliados. Fato é que a lenda surgiu e encantou milhares de pessoas, que agora buscavam saber onde a misteriosa ilha de São Brandão estava.

A ilha parecia estar oculta para os mortais, apresentando uma semelhança com as histórias de Aman e Valinor em O Silmarillion, onde os homens não podiam encontrar as terras abençoadas:

As ilhas, invisíveis para a maioria dos mortais, que se encontram no oceano distante, ou nos mares e canais próximos da Irlanda, costumam ser vistas por heróis que partiram em algumas expedições erráticas. Magos, ou pessoas encantadas, são encontradas, e seus feitiços às vezes prevalecem contra intrusos terrestres. Em certos casos, as pessoas encantadas são derrotadas pela habilidade e bravura mortal. Nesse caso, o aventureiro não pode rever a Irlanda. (O’HANLON. p. 114)

Na nota escrita por Tolkien pode-se ler “Mar vermelho: Mediterrâneo (perde seu barco [viaja a pé pelas selvas da Europa?]) Ou do Atlântico”. A conexão pode ser também feita com a lenda de Hy-Breasil, em que John O’Hanlon menciona um lago vermelho como sendo parte da Ilha Hy-Breasil:

Assim é chamada a rica “Ilha do Lago Vermelho”, onde os pássaros cantam melodiosamente, e ela é até mesmo celebrada em alguns dos nossos romances antigos ou medievais. Este Lago Vermelho é suposto por muitos ter sido o atual Mar Mediterrâneo. Uma ilha estava dentro dele, na qual um palácio foi construído. Aqui, as árvores frutíferas também cresceram, e os imortais ali viviam alimentados com seus produtos deliciosos. (O’HANLON, John, p. 114) 

O dito “lago vermelho” pode ter alguma relação com o nome do Brasil, que se acreditava ter vinculo com a madeira Pau Brasil, que tem uma tintura vermelha. Sobre essa conexão entre a origem do nome do país e a lenda Tolkien apresenta comentários em seu ensaio “On Fairy Stories” (Sobre Contos de Fadas), publicado no livro Tree and Leaf (1964). 

O ensaio foi escrito originalmente no ano de 1938, mas em 1943 foi revisado e ampliado por Tolkien. Nessa revisão o autor incluiu um breve parágrafo, com uma nota de rodapé, conforme o seguinte:

Parece ter entrado em moda logo depois que começaram as grandes viagens que tornariam o mundo estreito demais para conter ao mesmo tempo homens e elfos; quando a terra mágica de Hy Breasail no Oeste se tornara meros Brasis, a terra da madeira da tintura vermelha. (Nota 2: Sobre a probabilidade de que o Hy Breasail irlandês tenha desempenhado um papel no nome do Brasil, ver Nansen, In Northern Mists, ii, pp. 223-30).

Tolkien critica as mudanças que aconteceram na época do renascimento com a ampliação do racionalismo em detrimento das lendas antigas. Anteriormente havia uma imensa expectativa do que se encontrava além dos mares do oeste e com isso surgiam lendas e o mundo parecia ser mágico. Com as descobertas esse encanto parece ter desaparecido e as lendas antigas não se encaixavam mais no contexto. O mundo que antes não tinha bordas agora se torna fechado e estreito.

É nesse processo de desmitificar o mundo que o nome Hy Breasail deixou de ser uma das lendas mais contadas entre os europeus e passou a ser utilizada como referencia a apenas a uma terra com o nome relacionado a madeira vermelha Brasil.

Citando o texto de Nansen, Tolkien mostra que a realidade pode ter um certo vinculo com a antiga lenda. No livro “Tolkien On Fairy-stories” editado por Verlyn Flieger e Douglas A. Anderson, nos comentários a esse trecho sobre o Hy Breasail, destaca-se do livro de Nansen citado por Tolkien o seguinte trecho:

O mito irlandês do Hy Breasail, ou Bresail, a ilha do Atlântico [cf. vol. i. p.357], é evidentemente muito antiga, a ilha é uma das muitas terras prosperas tal como “Tír Tairngiri” [a terra prometida]. Segundo a opinião de Moltke Moe e Alf Torp o nome pode ter vindo do Irlandês “bress” [boa fortuna, prosperidade], e poderia então ser absolutamente o mesmo como o Insulae Fortunaatae. Os italianos podem facilmente ter adquirido com esse mito através dos monastérios Irlandeses no Norte da Itália, ao menos de fato eles o tinham entre seus marinheiros, e dessa forma a ilha veio para o mapa. A forma “brazil” pode ter surgido a partir da conexão cartográfica do nome com o valioso Pau Brazil, usado em tinturas. O canal dividindo a ilha do Brazil no mapa pode ser o rio que na lenda de Brandan passa através da ilha chamada “Terra Repromissionis,” e que Brandan (na navegação) foi capaz de atravessar. É provavelmente o rio da morte (Styx), e possivelmente o mesmo que se tornou o rio em Hop na saga islandesa de Wineland (see vol. I p. 359). Nós encontramos aqui de novo a possibilidade da conexão, e essa proximidade de que provavelmente o Brasil foi a Terra Prometida da Irlanda, o que de outra forma ajudou a formar Wineland”.

Se o nome da lendária ilha tem alguma conexão direta com o nome do país, isso deve ser objeto de estudos mais apurados. Contudo, é interessante analisar que diversos mapas entre os séculos XI a XV continham uma ilha a oeste apelidada de “Ilha de São Brandão” ou apenas de “Brasil”. É dito até que Cristovão Colombo tinha a referência a essa ilha em seu mapa e até visitou algumas cidades costeiras a procura de mais informações sobre as viagens antigas nessa direção.

A Aranha e a escuridão

A Aranha mencionada tecia escuridão e formava uma grande sombra que aprisionava suas presas, por isso foi chamada de “Noite”. Posteriormente os rascunhos davam o nome de Ungweliantë, Wirilómë (tecelã de escuridão).

Essa personagem é desenvolvida e se torna a aranha gigante Ungoliant em O Silmarillion. O vinculo entre a aranha e a escuridão permanecem, sendo Ungoliant uma tecelã de escuridão que nenhuma luz consegue penetrar.

Também em outras obras do Tolkien as aranhas estão presentes. Em O Hobbit, Bilbo Bolseiro enfrenta muitas aranhas na Floresta das Trevas, além de Shelob (Laracna) ter enfrentado Frodo em O Senhor dos Anéis, em meia a grande escuridão em sua toca próxima a Mordor.

Desse modo, Tolkien não mudou sua ideia quanto a associação das aranhas e a escuridão desde o início do legendarium.

Os Homens-Árvore

A presença de Árvores como símbolos é frequente na obra de Tolkien, tal como uma inspiração em outras mitologias que dão a esse símbolo grande importância. Especialmente nas lenda céltica as árvores tem um papel sagrado, tendo destaque para a chamada “Elder” (anciã) que é conhecida como “árvore das fadas”.  Também a ideia está associada a religião pagã céltica que tinha determinados cultos aos espíritos da floresta. É nesse ponto que ao longo do tempo Tolkien desenvolveu a ideia do que se tornaria os “Ents”, os pastores de árvores, criados por vontade de Yavanna e que aparecem em O Senhor dos Anéis.

A ideia das montanhas de fogo também permaneceu no imaginário de Tolkien, onde posteriormente ele formularia dois conhecidos montes que se relacionam com o fogo, a Montanha da Perdição em o Senhor dos Anéis e a Montanha Solitária em O Hobbit, além de outras vistas em O Silmarillion.

Anotações adicionais nas margens da folha

Abaixo dos tópicos da página avulsa existe ainda uma nota escrita por Tolkien: “A cidade dourada era Kôr e ele escutou a música do Solosimpë, e retornou para encontrá-la, apenas para descobrir que as fadas partiram de Eldamar. Ver o pequeno livro. Empoeirado com a poeira de diamante ele sobe pelas ruas desertas de Kôr”.

Ao analisar os manuscritos de seu pai, Christopher Tolkien descobriu que o trecho final “foi adicionado mais tarde, e que o resto do esboço pertence à escrita mais adiantada do poema, no inverno de 1914” (p. 262). Isso se justifica também pelo fato de que as palavras “Kôr”, “Solosimpë” e “Eldamar” serem parte do “Qenya Lexicon” em que muitas ideias já estavam sendo desenvolvidas em relação à criação do idioma dos elfos. Assim, esse trecho adicionado parece estar associado com o poema ‘The Bidding of the Minstrel” que foi escrito no final de 1914.

No final de 1914 e inicio de 1915, enquanto ainda era estudante em Oxford, Tolkien começou a desenvolver seu idioma inventado “Qenya”. Ele começou realizando listas de nomes e dando suas etimologias, significados e regras gramaticais.

É desse período o “Qenya Lexicon”, um conjunto de palavras na antiga língua dos seres que seriam mais tarde chamados de Elfos. Essas anotações foram reunidas e publicadas no periódico Parma Eldalamberon 12, com edição de Christopher Gilson, Carl F. Hostetter, Patrick H. Wynne e Arden R. Smith.

Ea,earen(-d):águia.
Earendl o vagante, o grande marinheiro que navegou no céu em seu navio Vingelot, que agora é a estrela da manhã ou vespertina. Voronwe era sua companheira fiel na terra, também Elwenillo, filho de Voronwe. (PE 12, p.33) 

Kor (kōr-), a antiga cidade construída sobre as rochas de Eldamar. De onde as fadas marcharam para o mundo. (PE 12, p.48)

Eldamar, a praia rochosa da ocidental Inwinóre (Faëry), de onde os Solosimpeli dançaram nas praias do mundo. Sobre esta pedra foi construída a cidade branca, chamada Kor, de onde as fadas vieram ensinar canção e santidade aos homens. (PE 12, p.45)

Solosimpe = Flautistas costeiros. “As fadas [tribo dos Eldar] viviam entre as rochas e as alturas de Eldamar, os quais dançavam nas praias do mundo – e agora dançam e tocam flautas para as ondas ou fazem melodia nas cavernas finas das margens de Tol Eressea.” (PE 12, p.83).

Os primeiros nomes começam a se formar e os elementos de suas histórias vão a cada momento se desenvolvendo. Agora a estrutura passa por um processo de maturação linguística. Tolkien busca se preocupar com as origens das palavras, seus significados dentro de seu universo e como elas podem ser encaixadas em histórias. Contudo, até esse momento (início de 1915)

Tolkien não havia começado suas primeiras histórias em prosa, apenas poemas viriam a se desenvolver antes que começasse a escrever uma história mais longa e em prosa.

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:

HAMMOND, Wayne G. SCULL, Christina., The J.R.R. Tolkien Companion and Guide: I. Chronology, HarperCollins, Londres, 2006.

HOOPER, Walter. C.S. Lewis: The Companion & Guide. HarperCollins, Londres, 1996.

MCKILLOP,James. A Dictionary of Celtic Mythology. Oxford University Press, Oxford, 1998.

MORAN, P.F. Editor. Nauigatio sancti Brendani abbatis [the Voyage of St Brendan the Abbot], traduzido por Denis O’Donoghue, Brendaniana, 1893.

TOLKIEN, J.R.R. Tolkien On Fairy-stories. Editado por Verlyn Flieger e Douglas A. Anderson, HarperCollins, Londres, 2006.

_______________ Parma Eldalamberon Vol. 12, editado por  Christopher Gilson, Patrick Wynne, Arden R. Smith, Carl F. Hostetter, publicação independente, 1998.

______________. Sauron Defeated, Editado por Christopher Tolkien, HarperCollins, Londres, 1995.

O’HANLON, John. Irish folk lore: traditions and superstitions of the country, with humorous tales. Cameron e Fergunson, Londres, 1840.

O‟MEARA, John, WOODING, Jonathan. The Voyage of Saint Brendan: Representative Versions of the Legend in English Translation, ed. W.R.J. Barron e Glyn S. Burgess, Exeter, 2002.