Sérgio Ramos

O navio que levou os Portadores do Anel foi o último a zarpar da Terra-média para as Terras Imortais?

Arte dos irmãos Hildebrandt.
Arte dos irmãos Hildebrandt.

Por Sérgio Ramos*.

Pergunta: O navio que levou os Portadores do Anel foi o último a zarpar da Terra-média para as Terras Imortais?

Resposta: Em primeiro lugar, podemos ter certeza de um fato: os Portos Cinzentos, apesar de ser o principal lugar de onde os elfos deixavam a Terra-média para as Terras Imortais, não era o único porto de onde os navios élficos partiam para o Oeste. Temos como exemplo o porto de Edhellond, localizado no sul de Gondor, próximo a Dol Amroth.

Porto de Edhellond, próximo à região de Belfalas e Dol Amroth.
Porto de Edhellond, próximo à região de Belfalas e Dol Amroth.

Sabemos que Círdan, o Armador, tinha afirmado que permaneceria nos Portos Cinzentos até a partida do último navio. Mas que navio seria esse? Veja o que é dito n´O Silmarillion:

“Ora, todos esses feitos foram realizados em grande parte graças aos conselhos e à vigilância de Mithrandir; e nos dias finais revelou-se que ele era um senhor digno de enorme reverência; e, trajado de branco, entrou em combate. Mas, somente quando chegou sua hora de partir foi que se soube que ele por muito tempo havia sido o guardião do Anel Vermelho do Fogo. A princípio, esse Anel fora confiado a Círdan, Senhor dos Portos, que o havia transmitido a Mithrandir, pois sabia de onde ele viera e para onde afinal retornaria.

– Toma agora este Anel – disse ele -, pois tuas aflições e cuidados serão grandes, mas em tudo ele te dará apoio e te defenderá do cansaço. Pois este é o Anel do Fogo e, com ele, talvez tu consigas reativar nos corações a bravura de outrora num mundo que está esfriando. Quanto a mim, meu coração está no Mar; e vou permanecer junto às costas cinzentas, protegendo os Portos até a partida da última embarcação. Então esperarei por ti.

Branca era a nau; muito demorou sua construção e por muito tempo ela aguardou o final do qual Círdan falara. Porém, quando todos esses fatos aconteceram, e o herdeiro de Isildur havia assumido o comando dos homens, tendo sido passado para ele o domínio do oeste, também ficou claro que o poder dos Três Anéis havia finalmente terminado; e, para os Primogênitos, o mundo se tornara velho e cinzento. Nessa época os últimos noldor zarparam dos Portos e deixaram a Terra-média para sempre. E depois de todos, os Guardiões dos Três Anéis chegaram ao Mar. E o Mestre Elrond embarcou ali, na nau preparada por Círdan. No crepúsculo de outono, ela partiu de Mithlond, até que os mares do Mundo Curvo foram se afastando abaixo dela, e os ventos do céu arredondado não mais a perturbaram. E, sustentada no alto, acima das névoas do mundo, passou para o Antigo Oeste, e chegou o fim para os eldar de prosa e verso.” (J. R. R. Tolkien – O Silmarillion, Dos Anéis de Poder e da Terceira Era) (destaque nosso)

Partida nos Portos Cinzentos (arte de Ted Nasmith).
Partida nos Portos Cinzentos (arte de Ted Nasmith).

Percebemos, assim, que Círdan prometera ficar nos Portos Cinzentos até que dali partisse a última embarcação feita nas Costas Cinzentas, a qual levaria Gandalf de volta a Valinor. Ou seja, este foi realmente o último navio que partiu dos Portos Cinzentos (Mithlond), não necessariamente sendo o último navio élfico a partir da Terra-média como um todo.

De acordo com o Conto dos Anos, em 29 de setembro de 1421 da Terceira Era, partiu o navio branco levando Círdan, Gandalf, Galadriel, Elrond, Frodo e Bilbo.

No entanto, temos conhecimento de outro navio que partiu bem depois em direção das Terras Imortais. Foi a embarcação de Legolas e Gimli, que não partiu dos Portos Cinzentos, e sim de Gondor:

“Então Legolas construiu um navio cinzento em Ithilien, desceu navegando pelo Anduin, e depois através do Mar; com ele, conta-se, foi Gimli, o anão. E, quando aquele navio desapareceu, terminou a Sociedade do Anel na Terra-média.” (J. R. R. Tolkien – O Conto dos Anos).

É possível constatar que a partida de Legolas e Gimli foi posterior ao último navio de Círdan, até porque

Legolas e Gimli alcançam as margens de Valinor (arte de Ted Nasmith).
Legolas e Gimli alcançam as margens de Valinor (arte de Ted Nasmith).

foi com essa viagem que “terminou a Sociedade do Anel na Terra-média”. E este registro marca no Conto dos Anos o ano de 1541 da Terceira Era, mesmo ano do passamento do Rei Elessar.

Então, analisando-se as passagens e datas acima, conclui-se que Círdan se referiu ao último navio dos Portos Cinzentos, o qual carregou os portadores dos Três, juntamente com Bilbo, Frodo e Círdan, não tendo sido, portanto, o último navio élfico a zarpar da Terra-média, pois sabemos que o navio de Legolas e Gimli partiu 120 anos depois pelo sul, via Anduin. Pode ter havido outros que partiram ainda depois disso.

*Sérgio Ramos é membro da Tolkien Society e administrador do Tolkien Brasil. Servidor público, esportista e entusiasta de histórias de heróis.
*Sérgio Ramos é membro da Tolkien Society e administrador do Tolkien Brasil. Servidor público, artista marcial e entusiasta de histórias de heróis.
Michael Martinez

Por que Círdan tem barba? Por Michael Martinez

Michael Martinez é um dos mais conhecidos Tolkienistas (escritor de Tolkien). Michael é autor de Visualizing Middle-earth, Parma Endorion: Essays on Middle-earth, 3rd Edition, and Understanding Middle-earth: Essays on J.R.R. Tolkien’s Middle-earth.Suas colunas são conhecidas por todo o mundo, pois já foram traduzidas para o português, espanhol, grego, italiano, húngaro, finlandês, hebraico, e outros idiomas.

 

Tradução: Sérgio Ramos

Pergunta: Por que Círdan tem barba?

Resposta: Em O Senhor dos Anéis, Círdan é mencionado diversas vezes, mas ele somente aparece uma vez, onde ele recebe a companhia de Elfos liderados por Elrond e Galadriel quando eles estão prestes a partirem da Terra-média:

“Quando chegaram aos portões, Círdan, o Armador, aproximou-se para cumprimenta-los. Era muito alto e tinha uma barba muito comprida, os cabelos grisalhos e um rosto velho, a não ser pelos olhos que eram brilhantes como as estrelas; olhou para eles e fez uma reverência, dizendo depois:

– Já está tudo pronto.”

"O Armador". Arte de Antti Autio.
“O Armador”. Arte de Antti Autio.

Esta é a única menção a uma barba entre os Elfos em O Senhor dos Anéis, embora alguns leitores tenham fantasiado Elrond com uma barba (aparentemente, sem saber explicar por quê). A perceptível ausência de barba dos Elfos é intimamente associada com o Príncipe Imrahil, que Legolas reconhece como tendo sangue élfico:

“Finalmente chegaram à presença do Príncipe Imrahil; Legolas, olhando para ele, fez uma grande reverência, pois viu que realmente ele tinha nas veias o sangue dos elfos.

– Salve, senhor! – disse ele. Já faz muito tempo que o povo de Nimrodel deixou as florestas de Lórien, e mesmo assim ainda se pode ver que nem todos partiram do porto de Amroth, navegando para o oeste.”

Apesar da falta de qualquer referência ao rosto de Imrahil na passagem acima, em Contos Inacabados de Númenor e da Terra-média, Christopher Tolkien pareceu confirmar a noção de que Imrahil não tinha barba:

“Em nota escrita em dezembro de 1972 ou mais tarde, e entre os últimos escritos de meu pai sobre o tema da Terra-média, há um exame do traço élfico entre os homens, com relação ao fato de que é observável por serem imberbes aqueles de tal ascendência (ser imberbe era característica de todos os elfos); e aqui se observa, em relação à casa principesca de Dol Amroth, que ´essa linhagem tinha um traço élfico especial, de acordo com suas próprias lendas´ (com uma referência ao diálogo entre Legolas e Imrahil em O Retorno do Rei, V, IX, citado acima).”

Como é que pode os Elfos serem imberbes se Círdan tinha barba? Esta nota de 1972 não é inconsistente com os textos publicados? Assim parece, mas então a Elvish Linguistic Fellowship publicou um texto no Vinyar Tengwar número 41 (julho de 2.000) que parece resolver a questão. Christopher Tolkien publicou a maior parte de um texto em The Peoples of Middle-earth [The History of Middle-earth, vol. XII], o qual ele denominou “The Shibboleth of Fëanor (“A Pedra-de-toque de Fëanor); este ensaio explicou as profundas divisões dos Noldor de Aman e forneceu muitas informações previamente reservadas sobre os descendentes de Finwë, incluindo membros previamente não publicados da Casa de Finwë. O Vinyar Tengwar número 41 incluiu outras partes do “Shibboleth”, dentre as quais estava o comentário editorial que diz:

“A nota etimológica a seguir pertence ao nome Russandol na discussão do nome Maitimo na lista numerada de nomes dos sete filhos de Fëanor (XII:352-52). Uma nota marginal contra essa discussão fornece o detalhe que Nerdanel ´ela mesma tinha cabelos castanhos e uma pele avermelhada´. Uma nota em outro local nos papéis associados com este ensaio diz: ´Elfos não tinham barbas até que eles entrassem em seu terceiro ciclo de vida. O pai de Nerdanel [Cf. XII: 365-66 n. 61] foi excepcional, estando apenas no início de seu segundo.”

Deve ser ressaltado, contudo, que estes textos foram compostos em tempos diferentes na vida de Tolkien, e eles podem não estar diretamente conectados uns aos outros. Por exemplo, a passagem em O Senhor dos Anéis descrevendo o encontro de Legolas com Imrahil e a passagem descrevendo Círdan foram provavelmente escritas entre 1946 e 1948; Christopher data o “Shibolleth of Fëanor” de 1968; e é claro que a nota sobre a “falta de barba dos Elfos” é datada de 1972. O quanto Tolkien pode ter pensado a respeito de textos mais antigos, tanto publicados quanto não publicados, quando ele escreveu aquela nota final é totalmente uma questão de especulação (a menos que algum outro papel tenha sido publicado sem o meu conhecimento – eu devo mencionar que eu NÃO tenho cópias de todas as newsletters linguísticas). Há, contudo, outro ponto que deveria ser mencionado antes de finalizar. No ensaio sobre “Os Istari”, o qual Christopher data de 1954, J. R. R. Tolkien escreveu sobre Gandalf:

“… Na maioria das vezes viajava a pé, incansável, apoiado num cajado; e assim era chamado entre os homens do norte de Gandalf, “o Elfo do Cajado”. Pois consideravam (embora erradamente, como se disse) que pertencia à espécie dos Elfos, visto que às vezes fazia maravilhas entre eles, por apreciar em especial a beleza do fogo. Realizava porém tais maravilhas principalmente para o contentamento e o deleite, sem desejar que ninguém sentisse reverência por ele ou seguisse seus conselhos por temor.”

Se o Gandalf barbado era confundido pelos homens como da raça élfica (em 1954, apenas 6-8 anos após a passagem de Círdan ter sido escrita) então parece que por algum tempo Tolkien sentiu que fosse aceitável que um Elfo muito idoso tivesse barba. Círdan é, claramente, um dos mais antigos Elfos a viver na época da Guerra do Anel, mais velho

"Círdan, o Armador". Arte de Volha Marieta.
“Círdan, o Armador”. Arte de Volha Marieta.

por muitos anos do que Celeborn e Galadriel, os outros dois Elfos mais velhos encontrados na história. Talvez Tolkien tenha pensado sobre três ciclos da vida o tempo todo, e só escreveu a respeito posteriormente em sua vida, num ensaio em que ele sentiu que fizesse sentido. Nós nunca saberemos com certeza. Mas a barba de Círdan pelo menos parece ser consistente com a ideia de que Homens podiam aceitar um Elfo muito velho com barba, bem como com a nota tardia de que Elfos eventualmente tinham barbas.

É claro, os Anéis de Poder (como Tolkien observa em algumas cartas e ensaios) foram criados para desacelerar ou retardar os efeitos do Tempo e Decadência, diminuindo o processo de envelhecimento dos Elfos na Terra-média a uma proporção de 1:100 anos. Isto é, a cada 100 anos que se passavam na Terra-média, os Elfos sentiam os efeitos de apenas 01 ano. Os Anéis de Poder retardaram os efeitos decadentes do Tempo na Terra-média por cerca de 4.800 anos, o que foi uma parte substancial dos tempos de vida de Elrond, Galadriel e Celeborn. Logo, todos eles continuaram a aparentar bem jovens (tendo continuado a envelhecer no máximo cerca de 480-500 anos desde que os Anéis foram feitos). Círdan, contudo, já era bem velho no tempo em que os Anéis foram criados. Assim, mesmo envelhecendo outros 480-500 anos pelo final da Terceira Era, ele ainda devia ser muito velho para os padrões de um Elfo. Sua barba parece, assim, adequada e coerente com todos os textos.

Artigo publicado originalmente 13 de Janeiro de 2012 AQUI. A tradução e publicação foram autorizadas pelo autor do artigo Michael Martinez. Tradução de Sérgio Ramos.